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Foto: Rroselavy/Shutterstock
Edição 219

Em defesa (de um sósia) da razão

Embora não saiba reconhecer a existência de um sósia de Felipão, esse jornalista sabe reconhecer a inexistência de Deus

Flávio Gordon
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“Devemos em primeiro lugar tentar manifestar a verdade que a fé professa e a razão investiga, estabelecendo argumentos demonstrativos e prováveis, de modo que a verdade possa ser confirmada e o adversário convencido.”
(São Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, 1259-1265)

“A ciência e a religião lutam juntas uma batalha constante, perpétua, incansável contra o ceticismo e o dogmatismo, contra a descrença e a superstição. O fio condutor dessa luta vem do ado e estende-se para o futuro: em direção a Deus.”
(Max Planck, Religião e Ciência, 1938)

Em 19 de junho de 2014, em plena Copa do Mundo no Brasil, um jornalista de O Globo imaginou ter dado um furo de reportagem, ao enviar para o jornal carioca, e também para a Folha de S.Paulo, uma matéria com o título: “Felipão sobre Neymar: ‘Se tivéssemos três como ele, a Copa seria uma tranquilidade”. O sujeito acreditava ter acabado de topar com o então técnico da seleção brasileira e o craque brasileiro na ponte aérea Rio-São Paulo. No avião, o jornalista sentou-se ao lado de Felipão e puxou conversa, da qual extraiu o título da referida reportagem, que chegou a ficar no ar durante algum tempo, até ser retirada e substituída por uma nota: “Erramos: Felipão não falou com colunista”. Tratava-se, na realidade, de sósias de Felipão e de Neymar, e o jornalista não percebeu.

Pois bem. O episódio poderia ter servido de lição de humildade, baseada na percepção de que, conquanto os humanos sejamos criaturas racionais, nossa razão pode vir a nos trair, sobretudo num dia em que, pelos mais variados motivos, possa não estar muito afiada. Digo que o episódio poderia ter tido essa utilidade, mas não teve. Muito pelo contrário, eis que, dez anos depois do monstrengo jornalístico produzido pelo cochilo da razão humana, o mesmo sujeito anda por aí exaltando essa mesma razão, ostentando-a como um estandarte de guerra contra uma pretensa irracionalidade da fé religiosa. Espantoso!

Notícia publicada no jornal O Globo | Foto: Reprodução

Como muitos leitores já devem ter recordado, o jornalista em questão é Mario Sergio Conti. Em artigo do dia 24 de maio, publicado na Folha de S.Paulo com o título “Defender os ateus é defender a razão”, o sujeito que não foi capaz de notar a diferença entre o original e a réplica de figuras públicas tão conhecidas resolveu anunciar ao mundo uma descoberta sua: “Está firme na cadeira? Então escuta esta: deus não existe. É uma invenção compensatória. Quando falta o que comer e vestir, onde amar e trabalhar em paz, alguns compatriotas recorrem à entidade que seria capaz, se não de prover suas carências, de ao menos servir de consolo”. Sim, embora não saiba reconhecer a existência de um sósia de Felipão, Conti sabe reconhecer a inexistência de Deus. a da comédia pastelão à metafísica com toda a naturalidade. Imaginem a que grau de iluminação não terá chegado daqui a mais dez anos?

Do início ao fim, o artigo de Conti a uma impressão de extemporaneidade de natureza quase cômica, como se estivéssemos diante de uma espécie de Dom Quixote, lutando contra os moinhos de vento da onipresença religiosa tal qual um ateu durante a Idade Média. Assim como demorou a discernir o falso Felipão, Conti parece ter se atrasado e perdido o bonde da história, pois já refluiu a grande onda do novo ateísmo militante surgida no início dos anos 2000, e esse seu belicismo antirreligioso soa muito cringe.

Foto: Reprodução

De fato, num momento em que até mesmo um tipo como o biólogo Richard Dawkins — fundador do novo ateísmo militante no início dos anos 2000 — se reconhece como um “cristão cultural”, e que mesmo um lugar insuspeito como a Finlândia experimenta um surpreendente aumento da religiosidade entre jovens, nosso cavaleiro de triste figura e ar blasé celebra a avançada secularização escandinava e profetiza:

“Um dia, Meca, o Muro das Lamentações, o Vaticano — e, aqui, o Santuário de Aparecida e o Templo de Salomão, no Brás — só atrairão iradores do engenho humano, e não crentes no além.”

Ora, essa profecia vem sendo feita no Ocidente ao menos desde o século 18. E até agora a utopia ateísta não se concretizou. Aliás, foi justamente uma decepção com o fracasso das assim chamadas “teorias da secularização”, formuladas por pensadores como Feuerbach, Marx e Freud, os quais previram (equivocadamente, hoje se pode dizer) o fim do sentimento religioso à medida que a ciência e a técnica progredissem, que deu origem ao neoateísmo de Dawkins, Sam Harris, Christopher Hitchens e o recém-falecido Daniel Dennett, que fundaram um movimento por muitos chamados de “ateísmo fundamentalista” e até mesmo “ateísmo evangélico”.

Templo de Salomão, no Brás, em São Paulo | Foto: Wikimedia Commons

A ingênua fé cientificista dos séculos 18 e 19, segundo a qual a ciência poria fim ao sentimento religioso da humanidade, foi manifesta, por exemplo, pelo iluminista barão D’Holbach, que escreveu O Sistema da Natureza:

“Se a ignorância sobre a natureza pariu os deuses, o conhecimento da natureza tende a destruí-los. Assim que o homem se torna esclarecido, os seus poderes aumentam, bem como os seus recursos, em paralelo ao aumento do conhecimento. As ciências, as artes e a indústria fornecem-lhe auxílio, a experiência encoraja o progresso… Quando devidamente instruído, o homem deixa de ser supersticioso.”

Essa mesma crença era partilhada pela maioria dos darwinistas sociais do século seguinte, dentre eles um dos mais famosos e infames: Adolf Hitler. Em certa ocasião, quando planejava um grande observatório e planetário na cidade de Linz (Áustria), o líder nazista explicou o projeto numa linguagem tipicamente iluminista (citado por Alan Bullock em Hitler: A Study in Tyranny):

“Milhares de turistas farão uma peregrinação ali, aos domingos. Terão o à grandeza do nosso universo. O frontão triangular terá este mote: ‘Os céus proclamam a glória da eternidade’. Será nossa maneira de dar aos homens um espírito religioso, de ensinar-lhes a humildade — mas sem sacerdotes. Para Ptolomeu, a Terra era o centro do mundo. Isso mudou com Copérnico. Hoje sabemos que nosso sistema solar é apenas um sistema solar entre outros muitos. O que poderíamos fazer melhor do que permitir ao maior número possível de pessoas ficar a par dessas maravilhas">“O antissemitismo da extrema esquerda universitária”

14 comentários
  1. NOS
    NOS

    Que paulada no MSC. Imagino ele lendo isso e pensando: “vou fingir que não li, assim me livro de refutar àquilo que não tem refutação” kkkkkkk

  2. Renato Perim
    Renato Perim

    Veja como são as coisas. Li o título da matéria, a chamada e pensei que o Flávio é que fosse ateu. Nem ia ler o texto, mas de curioso acabei lendo. Que decisão acertada. Descobri o quão inteligente é o articulista e o quão ignorante eu fui ao fazer conclusões precipitadas. Ótimo texto, como todos de Oeste.

    1. Gladner Cardeal Stasiuk Paes
      Gladner Cardeal Stasiuk Paes

      Flavio é de longe o mais inteligente articulista que já tomei conhecimento.

  3. Iury de Salvador e Lima
    Iury de Salvador e Lima

    Na realidade, o jornalista ateu está professando a religião comunista, que não aceita concorrência das religiões tradicionais. O maior erro do último século, que a sociedade ainda comete, é não reconhecer o comunismo pelo caráter teológico, muito mais que econômico ou social.

  4. Ricardo Gouveia Vitale
    Ricardo Gouveia Vitale

    Não entendo porque ateus e crentes travam batalhas.
    Para mim é um assunto indiferente, pois em nada me incomoda saber que alguém não acredita da existência de Deus, e vice e versa, desde que não haja agressão ou desrespeito.

    Aliás, nós crentes acreditamos em Deus, mas não provamos sua existência, e os ateus NÃO acreditam em Deus, e também não provam a sua inexistência.

    Portanto, crentes e ateus são ambos crentes: aquele que crê que algo existe ou deixa de existir, mas não o prova.

    Pra que conflito?

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Tempos ultra modernos que desmoralisa os sabichões de outrora. Conti, conte o que sabe não invente

  6. Lucy Pimenta de Lima
    Lucy Pimenta de Lima

    Brilhante artigo. Gostei demais.

    1. Lucy Pimenta de Lima
      Lucy Pimenta de Lima

      O Professor Olavo de Carvalho certamente aprovaria.

  7. André Lima os
    André Lima os

    Flavio Gordon não escreve meramente artigos, mas aulas, se destacando no cenário jornalístico, hoje transfigurado num grande prêt-à-porter de opiniões “contra ou a favor” do que quer que seja. Senti falta no texto, todavia, de citação à Santo Agostinho: “As reflexões de Santo Agostinho sobre as relações entre fé e razão deixam como legado para a Idade Média um programa intelectual que os medievais irão desenvolver. Do significado da fé e razão em Santo Agostinho a-se à sua meta, a busca da verdade (se ela pode ser alcançada ou não) e compreensão da revelação. Chega-se então à explicitação da agem de Gênesis 1, 26: assim como Deus é Trindade, a essência da alma é trinitária (memória, inteligência, vontade). Discorre-se, finalmente, sobre a posse da verdade”. (CUNHA, Mariana Paolozzi Sérvulo da. Santo Agostinho: Fé e Razão na Busca da Verdade. Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 44, p. 415-427, 2012)

  8. João Cirilo
    João Cirilo

    Mario Conti, como os ateus em geral, deve ser o tipo de pessoa que involuntariamente faz o sinal da cruz quando o avião entra em zona de turbulência.

    Como todo ateu, deve vez ou outra ter pedido a “deus ” ou a qualquer outra entidade (porque quem não acredita em Deus acredita em qualquer coisa, como escreveu Chesterton) numa hora de aperto; ou esperando a realização de algo pretendido.
    Ou seja, sempre no campo da barganha. Como ateu normalmente sabe muito pouco, Conti desconhece que a religião, exteriorizada na oração, cria um capital de graças para ser usado na hora da dificuldade, da doença, da dor física, do abatimento moral.
    Não é um comércio, não é um escambo: é simplesmente uma necessidade, que não visa nenhum benefício aqui, mas visa o além, enquanto prepara o espírito para as adversidades.

  9. Alcione Magalhães Ferreira
    Alcione Magalhães Ferreira

    Flavio Gordon,quantas sabedoria em um artigo só.

  10. Liliane Maria Lemos De Paula Martins
    Liliane Maria Lemos De Paula Martins

    Uma beleza de texto que para mim, também funcionou como aprendizado. Obrigada.

  11. Renato Borges Fagundes
    Renato Borges Fagundes

    Bravo, Flávio! Faríamos uma fortuna se comprássemos mário sergio conti (assim mesmo, com minúsculas) pelo que ele vale e o vendêssemos pelo que ele acha que vale.

    1. Jorge Luiz Dias Ferreira
      Jorge Luiz Dias Ferreira

      Bela conclusão, Renato!

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