Pular para o conteúdo
publicidade
Ministros Cristiano Zanin, Flávio Dino, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes (14/12/2023) | Foto: Nelson Jr./SCO/STF
Edição 258

Trapaças e mentiras

Os doutores em tudo continuam sonhando com a proclamação da ditadura

Augusto Nunes
-

No meio da aula magna para calouros do curso de Direito de uma universidade paulista, o ministro Flávio Dino reconheceu que, de acordo com a Constituição de 1988, o Legislativo legisla, o Executivo executa e o Judiciário julga. Mas os tempos são outros, ressalvou o caçula do Supremo Tribunal Federal. Ele vestiu a toga pela primeira vez em fevereiro de 2024. Pouco mais de um ano. Tão curto período no Pretório Excelso foi suficiente para elevá-lo à categoria dos doutores em tudo. “O protagonismo do Poder Judiciário é uma marca do nosso tempo que veio para ficar”, comunicou Dino aos universitários recém-chegados. “O Supremo está condenado a arbitrar temas políticos, econômicos e sociais.”

Militante comunista desde o berçário, deputado federal e governador do Maranhão eleito pelo PCdoB, senador pelo PSB e ministro da Justiça do governo Lula, ele fingiu que nunca ocupou cargos no Legislativo e no Executivo, talvez para louvar sem remorso a entrega dos demais Poderes aos doutores em tudo. “Se a política não resolve alguns problemas, isso vai para algum lugar”, foi em frente. Qual lugar? O Supremo, claro. No momento, por exemplo, Dino cuida simultaneamente de pendências e complicações que vão do mercado de trabalho no Brasil ao serviço funerário em São Paulo, das queimadas na Amazônia às emendas orçamentárias impositivas — sem deixar de manter sob estreita vigilância a prioridade número 1: os desdobramentos do “golpe de Estado” tramado por Jair Bolsonaro. 

Desde março de 2019, quando os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes plantaram no Pretório Excelso o inquérito das fake news, as sumidades trajadas de preto não param de intrometer-se em assuntos alheios. ados seis anos de abusos, continuam convencidos de que, para preservar o Estado de Direito, é preciso submeter a medonhas sessões de tortura o que chamam de “Carta Magna”. Com a soberba de quem efetivamente acredita que salvou o Brasil dos fascistas de extremíssima direita, seguem confiscando territórios pertencentes ao Legislativo e ao Executivo. Neste fim de fevereiro, o STF resolveu deliberar também sobre desavenças internacionais, expropriando uma área até agora confiada ao governo federal.

Decidido a livrar a humanidade das redes sociais, obcecado pela eternização da censura em escala planetária, faz uma semana que Moraes declarou guerra ao grande satã americano. Assim, neste 24 de fevereiro, também simulando proferir uma aula magna para calouros paulistas, ou mais de uma hora mandando chumbo em qualquer coisa ou gente com sotaque ianque. Ele é gerente da vara criminal semiclandestina que istra mais de 2 mil casos, além de capataz da usina de sentenças condenatórias, tornozeleiras eletrônicas e restrições sem pé nem cabeça. Mas deixou de lado tais ocupações e mandou às favas temas que interessam a futuros advogados para concentrar-se no alvo da vez. Transcrito sem correções nem retoques, segue-se um dos melhores piores momentos do bombardeio:

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro da Justiça, Flávio Dino, no Palácio do Planalto | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil Este trecho é parte de conteúdo que pode ser compartilhado utilizando o link https://valor.globo.com/politica/noticia/2023/11/27/analise-com-a-escolha-de-dino-lula-coloca-um-articulador-politico-para-o-stf.ghtml ou as ferramentas oferecidas na página. Textos, fotos, artes e vídeos do Valor estão protegidos pela legislação brasileira sobre direito autoral. Não reproduza o conteúdo do jornal em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do Valor (falecom@valor.com.br). Essas regras têm como objetivo proteger o investimento que o Valor faz na qualidade de seu jornalismo.
Luiz Inácio Lula da Silva e Flávio Dino, no Palácio do Planalto | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

“As big techs não são enviadas de Deus, como alguns querem. Elas não são neutras. São grupos econômicos que querem dominar a economia e a política mundial, ignorando fronteiras, ignorando a soberania nacional de cada um dos países, ignorando as legislações, pra aferir poder e lucro. Democracia é um negócio… pras big techs… porque tudo pras big techs é dinheiro, é um negócio. Democracia é um negócio. Assim como vendemos carro, vamos vender candidatos.”

Como sua comarca clandestina não abarca os Estados Unidos, o Primeiro Carcereiro teve de engolir comentários irônicos de executivos de big techs, críticas de jornalistas estrangeiros, contragolpes de deputados republicanos e mensagens explícitas ou em código — todas pouco animadoras — remetidas por autoridades do governo Trump. Nesta quinta-feira, de volta a Brasília, Moraes treplicou com a leitura de um discurso na sessão do STF. Se o idioma nacional foi poupado das pancadas desferidas por improvisos do ministro, a História não escapou do pontapé abaixo da linha da cintura. “Deixamos de ser colônia em 7 de setembro de 1822”, tropeçou Moraes ao declamar o que deveria ser o clímax do palavrório. Merece zero com louvor no Enem. O Brasil deixou de ser colônia em 16 de dezembro de 1815, quando D. João, ainda príncipe regente, fez do Brasil um Reino Unido a Portugal e Algarves. A monarquia brasileira nasceu sete anos antes do que imagina o orador.

Por ignorância ou piedade, nenhuma eminência corrigiu o erro bisonho. Tampouco se comentou a indigente resposta do Itamaraty à nota de um departamento do governo americano que não melhora a folha corrida do ministro. Antes de enviada, a réplica foi examinada pelo presidente Lula e por Moraes. Tais cuidados podem ser associados à constatação famosa feita pelo decano Gilmar Mendes: Lula não estaria no Planalto se o STF não fosse o que é. A notícia de que Moraes pode ser proibido de entrar nos Estados Unidos foi igualmente abrandada por piadinhas pouco inspiradas. “Se quiser ar lindas férias, pode ir para Carolina, no Maranhão”, sugeriu Flávio Dino. “Não vai sentir falta de outros lugares com o mesmo nome.” Moraes já está convidado para palestrar em maio num seminário que o empresário João Doria vai promover em Nova York. Dino precisa contar-lhe que entre as cidades maranhenses também existe uma Nova Iorque.

Ministro Alexandre de Moraes | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil.

“É falsa a ideia de que a autocontenção do STF é uma coisa boa, e o ativismo, uma coisa ruim”, disse Dino na PUC. “É falsa a ideia de que o Supremo, quando se abstém de votar alguma coisa, fez o certo.” Para o ministro, quem contesta o ativismo do STF decerto mudaria de ideia se conhecesse um dramático episódio ocorrido há quase 90 anos. Em seguida, Dino gaguejou a sinopse incompreensível:

“Olhe o julgado do Supremo sobre a deportação… deportação de Olga Benário. Uma cidadã alemã, é verdade, grávida de um bebê e que foi para a Alemanha e morreu num campo de concentração. Ela buscou evitar essa deportação onde? No STF. E o que foi que os meus colegas da época disseram? Isso é ato político. Não é algo de importância. É certo entregar uma mulher grávida para morrer no campo de concentração?”

Que se conte o caso como o caso foi. Casada com o líder comunista Luís Carlos Prestes, a militante alemã Olga Benário engajou-se em novembro de 1935 na fracassada Intentona Comunista, concebida para derrubar o governo de Getúlio Vargas. Presa semanas depois, estava grávida havia sete meses quando a Suprema Corte, em setembro de 1936, rejeitou o pedido de habeas corpus nº 26.155, protocolado pelo advogado Heitor Lima em 3 de junho de 1936 e apreciado na sessão de 17 de junho. Com a decisão, o tribunal aprovou a deportação abjeta — e a condenação à morte. Olga foi assassinada em 1942, no campo de concentração de Bernburg. Ali nascera em novembro de 1936 a filha Anita Leocádia, localizada e devolvida à liberdade graças à tenacidade da avó paterna, Leocádia Prestes. 

tse venezuela ; Cármen Lúcia afirma que urnas eletrônicas são seguras e inquestionáveis
Cármen Lúcia, ministra do STF, durante sessão na Primeira Turma da Corte (18/6/2024) | Foto: Mateus Bonomi/Estadão Conteúdo

Em 2022, a ministra Cármen Lúcia prometeu propor ao STF que se descule publicamente pelo que fez em 1936. Estava em vigor a Constituição de 1934, e o Estado Novo só seria decretado um ano depois da deportação. Num Brasil democrático, a Suprema Corte pecou por ação, não por omissão. A decisão infame foi endossada pela maioria dos ministros. É tarde para redesenhar a trajetória de Olga. Mas há neste momento centenas de vidas a salvar. O destino de uma multidão de brasileiros está nas mãos de 11 servidores públicos. 

O STF deveria orientar-se pela sabedoria e pelo senso de justiça que faltaram à avó Suprema. A ditadura do Judiciário é um pesadelo de curta duração. A verdade não morre. E quem tem razão sempre vence.

Leia também “Ilusionistas de picadeiro”

25 comentários
  1. Ney Carvalho Bitton
    Ney Carvalho Bitton

    Sua Excelência disse “aferir poder”? Pode isso Augusto?

  2. Manfred Trennepohl
    Manfred Trennepohl

    Estamos a mercê de um grupo de advogados (não é uma crítica aos profissionais do direito, apenas a citação da formação profissional) que, por apadrinhamento político e não por competência, ocupa as cadeiras da maior corte da justiça brasileira. Estes se nomeiam os tutores e recivilizadores do povo brasileiro. Infelizmente, quem deveria estar tomando atitudes para coibir este estado de coisas se finge de morto, é omisso e covarde para agir, os nossos senadores da república.

  3. VALDIR NONATO
    VALDIR NONATO

    Tudo isso que está Acontecendo a Culpa é do Senado

  4. Manfredo Rosa
    Manfredo Rosa

    Parabéns Nunes. Somos muitos os que sentem extremamente indignados com toda essa desgraça que se abateu sobre o Brasil.

  5. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Esse país jamais chegará ao status de nação. Lamentavelmente!

  6. João Antônio Lopes de Oliveira
    João Antônio Lopes de Oliveira

    Grande Nunes! Como sempre, brilhante!!!

    GRANDE Augusto Nunes! Como sempre, brilhante!!
    sempre, brilhante!!

  7. Susana De Morais Spencer Bruno
    Susana De Morais Spencer Bruno

    Pior: na década de 90 foi juiz federal no Maranhão

  8. Hinode Cadastro
    Hinode Cadastro

    Coragem

  9. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Augusto Nunes brilhante como sempre.
    A composição do atual STF já está na história como a pior que esse país conseguiu produzir.
    Já tivemos composições com notável saber jurídico. Mauricio Corrêa, Ellen Gracie, Eros Grau, Nelson Jobim entre outros.
    A composição atual é constituída de militantes a serviço de um sistema nefasto que envergonha o judiciário brasileiro.

    1. Marcos Ferreira Fuzo
      Marcos Ferreira Fuzo

      Comentário que expõe de forma transparente e direta o vergonhoso judiciário que este país tem hoje .

  10. Perecles Antônio Gonçalves Pacheco
    Perecles Antônio Gonçalves Pacheco

    A Constituição Federal não confere protagonismo ao STF; os poderes são independentes e harmônicos diz a Constituição Federal . Logo, independência e harmonia entre poderes não dizem com protagonismo do STF. O pior é o protagonismo de um STF com uma composição tão inculta e despreparada, ademais de embotada moralmente. É muito desanimador ser governado por mentes obtusas e tacanhas sem conhecimento jurídico, de escassa percepção dos dados dos sentidos e desprovida por completo de entendimento.

    1. Manfredo Rosa
      Manfredo Rosa

      Muito bom Perecles

  11. José Antonio Moura Guimarães
    José Antonio Moura Guimarães

    … é sempre um prazer enorme ser informado pelo grande jornalista A.N., devido a sua grande sabedoria política! Eu confesso q assinei essa Revista Cruzoé por sua causa!

  12. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Artigo de Augusto Nunes nem precisa colocar seu nome, no início da leitura já identificamos. Grande Augusto.

  13. Thais de MORAES Machado Suppo Bojlesen
    Thais de MORAES Machado Suppo Bojlesen

    Mestre Augusto Nunes, sempre um prazer ler os seus artigos, sucintos, esclarecedores e com um notável senso de humor!

  14. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Colocar 11 cola-ratos nos assentos das cadeiras das 11 cadeiras do plenário dos hermenêutico é uma boa solução

  15. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Colocar 11 cola-ratos nos assentos das cadeiras das 11 cadeiras do plenário dos hermenêutico é uma boa solução

  16. Wagner Darlan Antas de Almeida
    Wagner Darlan Antas de Almeida

    Se o Senado não agir esses ditadores vão aumentar seus tentáculos cada vez mais.

  17. Wagner Darlan Antas de Almeida
    Wagner Darlan Antas de Almeida

    Se o Senado não agir esses ditadores vão aumentar seus tentáculos cada vez mais.

  18. Wagner Darlan Antas de Almeida
    Wagner Darlan Antas de Almeida

    Se o Senado não agir esses ditadores vão aumentar seus tentáculos cada vez mais.

  19. Inteligencia Artificial
    Inteligencia Artificial

    A sintese da liberdade de expressao da Revista Oeste:
    Ser claro, para nós, significa o seguinte: só escrever de maneira a permitir a compreensão imediata do que está escrito.
    Ser conservador, em nosso entendimento, é defender claramente que as coisas boas sejam conservadas.
    Achamos que os problemas do capitalismo devem ser corrigidos com mais capitalismo, e não menos.
    Estamos convencidos de que o Estado deve interferir o mínimo possível nas atividades lícitas do cidadão.
    Somos contra a propensão dos governos de atribuir a si próprios poderes que nunca demos a eles pelo voto democrático.
    O fato fundamental sobre as ideias de esquerda, para nós, é bem claro: elas não funcionam.

  20. A-DDS
    A-DDS

    Se pegar a primeira foto acima, colocar num liquidificador e acrescentar água teremos um puro suco de merda.

  21. Paulo César de Castro Silveira
    Paulo César de Castro Silveira

    Ele errou na data. O Brasil já não era colônia em 1822. Fazia parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
    tanto que mandou deputados constituintes à Lisboa.

  22. Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva

    Artigo poderoso.
    Parabéns

  23. MNJM
    MNJM

    Chegará a hora desses tiranos fo STF . O povo está saturado dessa corja

Anterior:
Carta ao Leitor — Edição 258
Próximo:
A terra dos livres não tolera tiranos
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.