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Foto: Revista Oeste/IA
Edição 261

Uma cortina cor de toga

Com os desdobramentos do inquérito de exceção na política e no cotidiano, o país ou a sofrer a derrogação dos direitos e garantias fundamentais e da inviolabilidade dos representantes do povo por suas palavras e opiniões

Alexandre Garcia
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O ministro Moraes ofereceu, na sua residência funcional, um jantar em homenagem ao senador Pacheco. Convidou também o senador Davi Alcolumbre. Compreensível homenagem. Os dois, na Presidência do Senado, bloquearam pedidos de inquéritos para investigar se os guardiões da Constituição haviam descumprido o juramento de cumpri-la e defendê-la. Presente também no jantar o presidente da Câmara, Hugo Motta, que acaba de sepultar minha esperança em seu discurso de posse, quando havia prometido defender a democracia. Numa homenagem a José Sarney, ele discursou no plenário afirmando que “nos últimos 40 anos não vivemos mais as mazelas do período em que o Brasil não era democrático. Não tivemos perseguições políticas, nem presos ou exilados políticos. Não tivemos jornais censurados, nem vozes caladas à força. Não tivemos crimes de opinião, nem usurpação de garantias constitucionais”. Valha-me, ó deusa Themis!

Alexandre de Moraes, ministro do STF, e senador Rodrigo Pacheco | Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Democracia é a voz do povo. Só quem não é democrata discorda dessa verdade. O corolário dessa verdade é que, se não houver a voz do povo, livre, não há democracia. A censura que restringe a liberdade de expressão e de opinião é vedada na Constituição do Brasil. Como se expressa a voz do povo? Pela fala em lugares públicos. E, graças aos avanços digitais, pelas redes sociais, que ampliam, turbinam, potencializam a voz de cada pessoa, que ganha alcance universal. Há uma diferença — não há como não reconhecer — entre a voz nas redes e a voz na mídia tradicional. A mídia tradicional escolhe o que o povo pode receber como informação, ou o que é preciso informar ao povo. Nas redes, o povo é quem escolhe o que receber e o que descartar; é o exercício do discernimento de cada um, que também pode participar com sua voz. Volta e meia, ministros do Supremo pregam “regulamentação das redes sociais” além do que já está na lei, o Marco Civil da Internet, em vigor há 11 anos. Censura em nome da democracia.

Comemoraram-se “40 anos de democracia”. Pois já no primeiro dia desse período aram por cima da Constituição, quando um general que se disse dono do episódio foi decisivo para que não assumisse o presidente da Câmara, tal como está nos artigos 78 e 79 da Constituição de 1967, então vigente. O general Leônidas Pires Gonçalves, indicado para ministro do Exército, afirmou que não daria posse a quem comparara Geisel a Idi Amin Dada, o ditador de Uganda. Referia-se ao presidente da Câmara, Ulysses Guimarães, que deveria assumir na vacância do presidente e convocar eleições em 30 dias. O eleito, Tancredo Neves, estava hospitalizado, e Sarney era vice e substituto de alguém que ainda não era presidente. Sarney, que fora presidente do partido de sustentação do governo militar, assumiu, e assim começou a democracia. No seu Plano Cruzado, eram presos arbitrariamente gerentes de supermercado e de farmácia, e a polícia entrava nos pastos para prender boi gordo — já se usurpavam as garantias constitucionais. Então se fez uma nova Constituição, a cidadã. No dia da promulgação, Sarney me disse, em entrevista: “Com essa Constituição, o Brasil fica ingovernável”.

Ex-presidente José Sarney | Foto: Wikimedia Commons

Veio Collor e congelou poupanças e depósitos acima de 50 mil cruzados novos (cerca de R$ 7,2 mil). Outra usurpação, aprovada logo no Congresso. Em dois anos, Collor recebeu impeachment no Senado, mesmo tendo renunciado horas antes; ainda assim, ficou inelegível por oito anos, aplicando-se o artigo 52 da Constituição. No impeachment de Dilma, o que está no artigo 52 não valeu, e ela não ficou inelegível, mas foi reprovada pelos mineiros em sua candidatura ao Senado. Ficou em quarto lugar. Sabotaram a Constituição no Senado, em julgamento conduzido pelo guardião dela, o presidente do Supremo, Lewandowski, e o povo precisou corrigir nas urnas. Nos governos petistas, o Mensalão e a Lava Jato mostraram que a democracia fica disforme quando o dinheiro de estatais e dos impostos do povo é desviado para políticos e seus partidos. Tudo isso nesses democráticos 40 anos.

Nos últimos seis anos desses “40 de democracia”, veio uma enxurrada de ilegalidades, pois vigorou o “Inquérito do Fim do Mundo”, ando por cima da iniciativa do Ministério Público, do devido processo legal, da ampla defesa, do juiz natural, da vedação à censura e ao juízo de exceção. O queixoso investiga, denuncia, julga e manda executar. Pessoas, instituições e partidos que concordam com isso expõem um silêncio hipócrita, pois continuam falando em democracia e condenando “atos antidemocráticos”. A parte da mídia que abandona o espírito crítico vira “armazém de secos e molhados”, como vaticinou Millôr Fernandes. Desobedecer a Constituição que se jurou cumprir é crime mais grave que um quebra-quebra. Com os desdobramentos do inquérito de exceção na política e no cotidiano, o país ou a sofrer a derrogação dos direitos e garantias fundamentais e da inviolabilidade dos representantes do povo por suas palavras e opiniões. Parafraseando Churchill, ao contrário da mítica fala do presidente da Câmara, uma cortina cor de toga baixou sobre o Brasil, do Oiapoque ao Chuí.

O início dos “40 anos de democracia” foi antecedido pela abolição da censura, pela anistia para todos os crimes de sangue ou de opinião que tivessem a ver com a política, e pela revogação do arbítrio do AI-5. Foi feita uma Constituição para consolidar as liberdades e impedir o abuso do Estado, para que não se repetisse o autoritarismo. Mas a Constituição Cidadã não está contendo o arbítrio e o abuso. A Constituição tem como seus garantidores o Legislativo como fiscal, o Ministério Público como zelador, o Supremo como guardião e as Forças Armadas como garantia. Mas estamos em tempos em que um ministro do Supremo brada, em manifestação da UNE, “nós derrotamos o bolsonarismo”, e nada acontece. A inexistência de escândalo é mais escandalosa que a frase. A cortina cor de toga impõe respeito.

Sessão plenária no STF | Foto: Antonio Augusto/STF

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11 comentários
  1. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Nossa República nasceu de um golpe e assim continua até os dias atuais, tendo enfrentado ditaduras, renuncia de presidentes, impeachment, etc.
    Hoje o consórcio Lula/PT/STF/TSE faz o que bem entende e acreditam que isso é perfeitamente normal e aceitável.

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Luis Roberto Barroso, o juíz eleitoral que atua para derrotar um candidato.

  3. HUGO CELSO ALMEIDA CAVALCANTI
    HUGO CELSO ALMEIDA CAVALCANTI

    Ainda temos Câmara e Senado ? Tirando poucos que honram as calças que vestem me parece que o restante virou suco .

  4. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Tudo que Alexandre diz como os outros jornalistas da Oeste não deixa de ser eufemismo, retórica. Claro o jornalista é educado, mas pra nós cidadãos anônimos o Alexandre homenagea Rodrigo Pacheco, chama Alcolumbre e o Mota por quê, claro são da mesma láia

  5. Valquiria Maria Pessoa Rocha
    Valquiria Maria Pessoa Rocha

    A Câmara e o Senado são responsáveis por essas escolhas

  6. MNJM
    MNJM

    Gratificante ler uma bom texto, mestre Garcia.

  7. João José Augusto Mendes
    João José Augusto Mendes

    Só lembrando o Alcolumbre contratou a amante do desembargador do Amapá, cujo esposa queria castra-lo quando soube do affair, a contratação e negociação da amante está gravado e, Alcolumbre ( ou melhor Catacumba), voltou a presidência do senado. O deputado Hugo Motta, está sendo investigado, ou pelo menos foi denunciado por um empreiteiro, por exigir 10% do valor da liberação de verba, que fez para uma prefeitura e, está presidente da câmara. Ou seja, enquanto políticos corruptos do nordeste dominarem o congresso, este pais continuará deitado eternamente em berço esplêndido.

    1. Celso Ricardo Kfouri Caetano
      Celso Ricardo Kfouri Caetano

      Essa é uma realidade que poucos enxergam ou se fazem de alegres……é incompreensível que estados como SP/SC/Paraná/RS não tenham voz nenhuma no congresso, inteiramente dominado pelos políticos nordestinos. Isso me leva a crer que o governo de tais estados não se valorizam.

  8. Jonas Ferreira do Nascimento
    Jonas Ferreira do Nascimento

    Que show de artigo, Mestre!

  9. RODRIGO DE SOUZA COSTA
    RODRIGO DE SOUZA COSTA

    Que bom ler um jornalista de verdade.

  10. Joel Arnas Ramos
    Joel Arnas Ramos

    No Brasil de hoje, a cor da toga é a cor da morte! Impede que a luz do sol exerça sua natural e exemplar limpeza. São só trevas e demônios vociferando “defesa das instituições democráticas”, um engodo que não para em pé, porque a ausência de luz se encarrega de consumir-lhe o combalido e fétido esqueleto.

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