A euforia do nocauteado

No capítulo do livro Fama e Anonimato reservado ao perfil de Floyd Patterson, o grande boxeador conta ao jornalista Gay Talese o que lhe acontecia quando derrotado por nocaute. Semanas antes do encontro com Talese, um golpe de esquerda no queixo desferido pelo desafiante Sonny Liston o obrigara a ouvir com as pernas bambas, inteiramente grogue, a contagem de oito segundos ao fim da qual havia perdido o combate e o cinturão de campeão mundial da categoria peso-pesado. Não fora o primeiro nem seria o último dos muitos nocautes que sofreu. Todos provocaram as estranhas reações resumidas pelo ex-campeão no parágrafo abaixo reproduzido:

“Quando você é nocauteado, a sensação não é ruim, é até boa. Você não sente dor. Eu me sinto envolvido por uma névoa agradável e fico fortemente inebriado, como se flutuasse. Depois daquele soco de Liston, vi a plateia inteira invadindo o ringue para me rodear carinhosamente. Era como uma grande família. Esse bem-estar dura alguns segundos. Então vêm a dor, a vergonha e a vontade de encontrar no meio do ringue um alçapão que me permitisse abandonar aquele lugar e voltar para casa.”

Sempre que José Dirceu reaparece nos ringues da política brasileira, constato que o nosso guerrilheiro de festim é um Floyd Patterson sem vergonha. Os registros no cartel informam que se trata de um nocauteado vocacional. Como o boxeador americano em meados do século 20, desde 1968 a caricatura brazuca vive prolongados períodos de euforia depois de cada queda. As quedas foram dezenas. Em nenhuma ficou ruborizado ao recuperar os sentidos. Na hora de cair na real, engolir o fiasco e refugiar-se em casa, continua enxergando céu de brigadeiro em noite de tempestade — e escolhe para bronzear-se a primeira praia na rota do tsunami.

Há meses o governo Lula tenta safar-se do pântano expandido por recordes de impopularidade, derrapagens na política econômica, inexistência de planos e projetos, incompetência istrativa e, fora o resto, evidências de que a linha de frente da corrupção institucionalizada já nem espera o escurinho da madrugada para saquear cofres públicos. Itaipu vai ficando com cara de Petrobras. As eleições de 2024 já avisaram que em 2026 a coisa será pior. Muito pior, corrige a indignação popular com o desempenho do consórcio que junta o governo, o Supremo Tribunal Federal e o jornalismo estatizado.

Sempre desastrado, Zé Dirceu resolveu comunicar neste 28 de março que também ele ainda está aqui. Ele e os comparsas, lembrou numa discurseira na reunião do alto comando do PT. “Alguns dos nossos críticos da candidatura de Edinho Silva à presidência do partido dizem que os mensaleiros querem voltar”, ironizou. “Primeiro, eu nunca saí. Nem o Delúbio Soares, nem o João Vaccari Neto, nem o João Paulo Cunha. Nós nunca saímos.” Aos 79 anos, o chefe da quadrilha do Mensalão e oficial graduado do exército do Petrolão flutua sobre nuvens azuis geradas por antigos e frequentes nocautes. No momento, sonha com uma vaga na Câmara dos Deputados.

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Em agosto de 2005, despejado da chefia da Casa Civil, Dirceu ficou em êxtase com o nocaute inaugural. Elogiou o chefe supremo pela escolha de Dilma Rousseff — “minha camarada de armas” — para substituí-lo e prometeu assumir de imediato o comando do colosso paramilitar aquartelado na imaginação sempre fértil do mineiro de a Quatro. “Vou percorrer o país para mobilizar militantes do PT, dos sindicatos e dos movimentos sociais”, ameaçou. “Temos de defender o governo de esquerda do presidente Lula do golpe branco tramado pela elite e por conservadores.” O comandante sem comandados ou as semanas seguintes tentando escapar da cassação do próprio mandato. Outro nocaute. Em dezembro, caiu fora da Câmara chamando de “Vossa Excelência” o homem do cafezinho.

Em agosto de 2012, decidiu intimidar o Supremo Tribunal Federal às vésperas do início do julgamento do Mensalão. “Todos sabem que não será um julgamento, mas uma batalha política”, reincidiu no congresso nacional de uma certa União da Juventude Socialista. “Essa batalha deve ser travada nas ruas também, porque senão a gente só vai ouvir uma voz, a voz pedindo a condenação, mesmo sem provas. É a voz do monopólio da mídia. Eu preciso do apoio de vocês.” Os ministros que tratassem de inocentar os culpados, advertiu. Caso se atrevessem a enxergar a montanha de provas e evidências, o guerrilheiro diplomado em Cuba não hesitaria em sublevar “todos os companheiros das forças progressistas e dos movimentos populares”.

Àquela altura, qualquer torcida organizada de time do interior já tinha mais militantes que o PT. Assembleias organizadas por sindicalistas pelegos eram menos concorridas que reunião de condomínio. Sem duplas sertanejas, cerveja, tubaína e mortadela, as celebrações do Dia do Trabalho juntavam menos gente que quermesse de vilarejo. Todos os movimentos sociais morreriam de inanição uma semana depois de suprimida a mesada federal. Desafiado pelo fabricante de blefes, o ministro Joaquim Barbosa pagou para ver. Outro nocaute.

Dirceu estava entrincheirado no sítio em Vinhedo quando foi condenado à prisão. Estava de sunga branca numa praia da Bahia quando soube que aria a tomar sol só no pátio da cadeia. Para livrar-se da traseira do camburão, entregou-se espontaneamente à Polícia Federal em 15 de novembro de 2013. Achou uma boa ideia posar para as câmeras com o punho esquerdo cerrado apontando para o céu. Excitados pelo gesto do comandante, enfim deram as caras nas ruas os combatentes dispostos a matar ou morrer pelo chefe. Durante 15 minutos, saudaram o general aos gritos: “Dirceu! Guerreiro do povo brasileiro!”. E então a turma sumiu para nunca mais voltar. Somadas as condenações, o ex-capitão do time de Lula deveria ar quase 30 anos na gaiola. Ficou preso 854 dias.

Um exército liderado por Dirceu só conseguiria matar de rir. Não assustaria sequer um pelotão de escoteiros, nem mesmo um destacamento da Guarda Mirim de Taquaritinga. Os soldados a serviço do nocauteado falastrão seriam neutralizados em poucos minutos por um oficial psiquiatra e cinco enfermeiros armados de comprimidos tranquilizantes e meia dúzia de camisas de força.

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