Tarde quente do dia 15 de março de 2022, em Botucatu (SP). Jocimaria Oliveira Sales atravessa as portas do Pronto-Socorro Pediátrico Municipal com Helena, sua filha de 4 meses, aconchegada nos braços. A respiração da bebê era um sopro acelerado, resultado das batalhas que já enfrentara: bronquiolite aos 13 dias de vida, com oito dias na UTI; covid-19 em janeiro daquele ano; semanas antes, uma internação por bronquiolite viral aguda.
Diante da médica, Jocimaria suplicou: “Ela precisa ficar, já amos por isso; talvez um ventilador artificial ajude”. Mas o hospital estava um caos: sete horas de espera, consultórios abarrotados, crianças em oxigênio disputando espaço, e nenhum médico docente para supervisionar a equipe de aprendizes.
Um exame de raio X dos pulmões de Helena obteve um resultado semelhante a outro realizado dias antes, mas a investigação parou ali. Nada de gasometria arterial para medir a saturação real do sangue. O exame, semanas antes, levara à internação imediata da pequena com taquipneia.
Dessa vez, sem remédio algum, apenas com a recomendação de “limpeza nasal”, a médica liberou a bebê, confiante na saturação de 98%. “Ela me perguntou se eu estava segura para ir para casa, eu disse que não”, relembra a mãe. “Ela insistiu que de um dia para o outro nada aconteceria.”
Na manhã seguinte, o nada virou tudo. Ao acordar, Jocimaria percebeu que Helena não respirava e que seus sinais vitais não estavam presentes. Levada ao hospital pelo Samu, a criança recebeu atendimento de emergência. Foi em vão. Seu óbito foi declarado às 11h04 de 16 de março de 2022.
No dia seguinte, a autópsia de Helena revelou infecção pulmonar, pneumonite crônica e bactérias nos pulmões. A perita do Instituto Médico Legal (IML) foi clara: a alta foi um erro mortal. Em reunião com a família, a profissional disse que “com certeza” Helena deveria ter ficado no hospital. “Por mais leiga que a pessoa seja, dava para ver que era uma omissão”, diz Jocimaria. “Minha filha já tinha três internações pelo mesmo problema, com uma mancha no pulmão relatada no raio X. Ela deveria ter ficado.”
A dor de Jocimaria virou um abismo sem fundo. Mas ela resolveu lutar. Em junho de 2022, a mãe bateu às portas da Justiça e acusou a Prefeitura de Botucatu e a Unesp, unidas por um convênio na saúde, de matarem Helena.
Jocimaria pediu uma indenização que doesse aos cofres públicos, e ensinasse e evitar outras perdas. Fez mais: entrou com uma ação criminal contra a médica que liberou a bebê do tratamento a que tinha direito. A acusação considera que houve imprudência, imperícia e negligência no caso. “Foi uma omissão de socorro”, denuncia Jocimaria.
Enquanto espera o juiz, Jocimaria carrega Helena na camiseta. “Jurei no dia do enterro da minha filha que não ia deixar ela virar estatística”, diz. “Minha filha não volta, mas eu vou lutar até o último dia que eu respirar nesta Terra.”
Procurada por Oeste, a defesa da profissional acusada de erro médico afirmou que se manifestará apenas nos autos. O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu, por sua vez, disse que não comenta casos que ainda tramitam judicialmente. A Prefeitura Municipal de Botucatu — na figura das Secretarias de Saúde e de Comunicação — não respondeu à reportagem até sua publicação.
Por que tantos erros?
A dor dos pais da pequena Helena tornou-se cada vez mais comum. Nos últimos anos, o Brasil tem testemunhado um aumento expressivo de casos de erro médico levados à Justiça.
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2024 foram judicializados mais de 74 mil erros médicos — tanto como danos morais quanto materiais. O número representa um aumento de mais de 500% em relação a 2023, quando foram registrados cerca de 12 mil casos.

Mas o que está por trás dessa explosão? O país ou a formar médicos menos capacitados? Ou a população está mais consciente dos seus direitos? Para especialistas, não há um único fator determinante, e sim a soma de elementos que culminaram na maior judicialização da história médica do país.
“É muito semelhante àquilo que se fala quando um avião cai: uma conjunção de fatores”, explica Fernando Polastro, voluntário e um dos fundadores da Associação Brasileira de Apoio às Vítimas de Erro Médico (Abravem). Segundo ele, uma das principais explicações para o aumento no número de processos é a crescente conscientização da população sobre seus direitos. “O próprio Código de Defesa do Consumidor dá essa noção para as pessoas de que o atendimento médico é uma relação de consumo como todas as outras.”
Responsável por ministrar diversas disciplinas ligadas à saúde pública por cerca de 40 anos na Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), o médico sanitarista Antonio Luiz Caldas Júnior exemplifica como evoluiu essa conscientização: “Se uma mulher ia à escola e não tinha vaga para o filho dela, ela ia à rádio, reclamava, porque desde o início do século 20 a escola pública foi se expandindo como um direito. À tarde, ela ia ao posto de saúde: ‘Ah, minha senhora, só tem vaga para atender o seu filho daqui a dois meses’. E ela se conformava. Hoje, não mais”.
Outro fator crítico destacado por Polastro é a massificação do atendimento médico, principalmente no Sistema Único de Saúde (SUS). “O médico não tem mais a condição de formar uma relação médico-paciente sólida”, explica. Caldas acrescenta: “Se você pegar um médico que atendia 15, 20 consultas num período e, de repente, o secretário de saúde obriga ele a atender 40, com certeza a qualidade vai cair”.
Os campeões de ações na Justiça
O aumento desenfreado de faculdades de medicina também compromete a qualidade da formação profissional. Desde 1990, a quantidade de faculdades de medicina no país quintuplicou.
Entre 2000 e 2019, por exemplo, a média de novos cursos flutuou entre 11 e 12 por ano. Hoje, já são 390 instituições que oferecem o curso no Brasil — e mais 292 buscam autorização do Ministério da Educação (MEC) para começarem a operar.
Todos os anos, cerca de 45 mil novos médicos se formam nessas universidades. Em 2025, o Brasil deve ultraar países como Estados Unidos, Japão e China na proporção de médicos por habitante.
“Temos anualmente milhares e milhares de novos médicos sendo introduzidos no mercado com uma formação de nível baixíssimo”, critica Polastro. Ele ressalta que esses novos profissionais acabam por trabalhar nos locais mais críticos — como prontos-socorros.
Caldas chama a atenção para o local onde essas faculdades estão. “Muitas dessas instituições se localizam em cidades que não têm um corpo docente adequado”, pontua. “Às vezes têm ótimos médicos, mas um bom profissional não é necessariamente um bom professor.”
As especialidades campeãs em ações na Justiça são a cirurgia plástica e demais procedimentos estéticos, afirma Polastro, por causa da facilidade de comprovar um resultado insatisfatório. “A área da estética é a única em que há compromisso com o resultado, o que torna a judicialização muito mais simples.”
Outras especialidades frequentemente judicializadas são a pediatria e obstetrícia. “Quando ocorre um óbito de uma criança, por exemplo, a revolta é maior porque você tem aquele conceito de toda uma vida pela frente”, nota Polastro. No caso da obstetrícia, o volume de processos é tão grande que tem desestimulado novos médicos a optarem pela especialidade.
Embora haja uma explosão de processos, Polastro conta que a taxa de sucesso dos pacientes é baixa, em torno de 20%. Entre os motivos estão a lentidão do Judiciário e a falta de advogados especializados. “A maior parte dos casos são ingressados por advogados generalistas, que são engolidos dentro da ação pela parte contrária”, revela.
Apesar da crescente busca por justiça, muitas famílias ainda hesitam em levar seus casos adiante. “Quando uma pessoa tenta entender se aquilo foi um erro, se cabe uma judicialização, dentro da própria esfera familiar ela é desencorajada”, lamenta Polastro. Além disso, a impunidade é um problema recorrente. “O corporativismo existe dentro de todas as profissões, mas na área da saúde é exacerbado.”
O caminho para a cura
Para a Abravem, a solução a por mudanças estruturais. “Desde o topo da cadeia, aqueles que definem as políticas públicas são cargos ocupados por políticos”, critica Polastro. Além disso, o financiamento do SUS é insuficiente, o que leva hospitais ao sucateamento. “É ridículo o valor que o governo rea para a unidade de saúde para uma cirurgia, para uma internação, para um atendimento.”
A formação acadêmica também precisa ser revista. “Tem muita gente fazendo medicina sem ter o perfil para ser médica, que só enxerga a questão financeira”, denuncia. Em um teste realizado pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), mais da metade dos estudantes de medicina foi reprovada.

A prova buscou verificar se os formandos possuem domínio básico de áreas essenciais da prática médica, como pediatria, clínica médica e epidemiologia. Os resultados foram alarmantes: 64% dos estudantes erraram uma questão sobre qual sintoma define a suspeita da tuberculose.
Quase 70% deles erraram outra pergunta sobre qual agente causa tosse gradualmente progressiva em uma criança de 8 anos com sintomas há duas semanas. A mesma parcela errou uma questão sobre o grau de redução da pressão arterial como principal fator na diminuição do risco cardiovascular.
Para Caldas, é fundamental que a discussão sobre erro médico saia do foco exclusivo na atuação dos profissionais e e a considerar o sistema de saúde como um todo. “Muitos erros são do sistema, não do médico: altas precoces, falta de equipamentos e de medicamentos.”
Os especialistas concordam que o caminho para reduzir os erros médicos no Brasil a por melhorar a formação dos profissionais, reestruturar o sistema de saúde e garantir uma justiça mais ágil para as vítimas. Até lá, a luta de pessoas como Jocimaria continua.
Leia também: “Os erros na pandemia”
Sempre a mesma conversa vinda dos mesmos , defensores de políticas públicas para tudo. Leiam ,informem-se
A médica errou ao não berrar com a mãe ir um leito e antibiótico ev, assumindo a culpa , quando o grande culpado é a existência do SUS.
Se não existisse, teríamos um hospital em cada esquina e um melhor q o outro. Concorrendo pelo paciente, quem ganha é o paciente.
Mas na cabeça marxista nossa, o problema é o número de médicos, sem aptidão- quem é ele para julgar?- e a falta de mais dinheiro para o SUS- acordem !
No site do instituto Mises há N artigos sobre a iniciativa privada e o o à saúde, por todos!!
Mudem suas cabeças! Parem de usar o pobre como moeda! O SUS só é bom para políticos, e médicos que usufruem, assim como para parentes deles que burlam filas.
Concordo.