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Donald Trump, presidente dos EUA, discursa ao lado dos reféns israelenses libertados, Keith Siegel, Aviva Siegel e Iair Horn, durante o jantar do Comitê Nacional Republicano do Congresso (NRCC) no Museu Nacional de Construção em Washington, D.C., EUA (8/4/2025) | Foto: Reuters/Nathan Howard
Edição 265

A porta de saída do trauma

Ex-reféns israelenses lideram a campanha pela libertação dos 59 que continuam aprisionados pelo Hamas

Miriam Sanger
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O ex-refém Eli Sharabi, morador do kibutz Beeri, no sul de Israel, sobreviveu a 491 dias de cativeiro em Gaza. Como alimento, recebia meio pão sírio ou uma pequena porção de arroz por dia. Foi mantido em túneis a dezenas de metros abaixo do solo, sem luz natural ou ventilação. Nas canelas, arrastava consigo correntes pesadas e ásperas de metal, normalmente usadas em gado.

@israelinusa 97 lbs. That's how much Eli Sharabi weighed when Hamas finally released him after over 480 days of captivity in Hamas tunnels. In this segment of an interview from #UvdaKeshet ♬ original sound – Embassy of Israel

No dia 8 de fevereiro deste ano, quando reapareceu em público em uma bizarra cerimônia de libertação promovida pelo Hamas, sua magreza extrema — 44 quilos, depois de perder 40% de sua massa corporal — levou o presidente Donald Trump a comparar publicamente seu estado físico ao dos sobreviventes de campos de concentração nazistas.

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Não bastasse o sofrimento dentro dos túneis, uma notícia trágica o esperava do lado fora: ao contrário do que repetiram os terroristas durante todo o tempo de cativeiro, ele foi informado de que sua mulher e suas duas filhas haviam sido assassinadas no próprio dia 7 de outubro de 2023. Seu irmão Yossi, também sequestrado pelo Hamas, morreu em cativeiro.

Com tudo isso, foi surpreendente acompanhar seu primeiro mês como homem livre: ao contrário do que se poderia prever, Sharabi assumiu o compromisso de lutar pela libertação dos 59 reféns ainda hoje em poder do Hamas. Apenas 19 dias depois de sua libertação, concedeu uma dura e longa entrevista ao Uvdá, prestigiado programa da TV israelense nos moldes do famoso 60 Minutes americano. Pela primeira vez um ex-refém ofereceu um relato detalhado para a mídia abordando temas difíceis, como a humilhação, o medo e as condições desumanas impostas pelo Hamas. Na semana seguinte, em 2 de março, ele desembarcou nos Estados Unidos para um encontro com o presidente norte-americano Donald Trump. 

O refém libertado Eli Sharabi encontra-se com o primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer, em Londres (7/3/2025) | Foto: Divulgação/Família de Eli Sharabi

Segundo Sharabi, esse esforço tem o objetivo único de cumprir sua promessa feita a Alon Ohel, jovem pianista de 24 anos, sequestrado durante o festival de música Nova, com quem ele conviveu durante meses em cativeiro. “Acabamos criando uma relação de pai e filho e, quando nos despedimos, Alon se agarrou a mim, desesperado com a perspectiva de permanecer ali sozinho. Prometi que eu não o abandonaria e que moveria os céus para tirá-lo de lá”, disse Sharabi durante a entrevista ao Uvdá.

 
 
 
 
 
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“Eles continuam emocionalmente presos nos túneis”

Eli Sharabi não é o único ex-refém a dedicar-se com afinco à campanha pela libertação dos 59 prisioneiros do Hamas, entre eles 24 vivos (22 israelenses e dois trabalhadores estrangeiros). “Todos os reféns libertados estão envolvidos com o tema, em maior ou menor intensidade. Eles conduzem eventos na Praça dos Sequestrados em Tel Aviv, concedem entrevistas em mídias locais e internacionais, viajam ao exterior para se encontrarem com todos os líderes ou entidades internacionais que os recebam. Alguns dedicam 100% de seu tempo a isso”, conta o doutor Amir Blumenfeld, membro do Departamento de Saúde do Fórum dos Reféns, um dos médicos responsáveis pelo seu atendimento e de seus familiares.

Os 24 reféns que se presume estarem vivos e que ainda estão em poder do Hamas. Fileira de cima, da esquerda para a direita: Elkana Bohbot, Matan Angrest, Edan Alexander, Avinatan Or, Yosef-Haim Ohana, Alon Ohel. Segunda fileira, da esquerda para a direita: Evyatar David, Guy Gilboa-Dalal, Bipin Joshi, Rom Braslavski, Ziv Berman, Gali Berman. Terceira fileira, da esquerda para a direita: Omri Miran, Eitan Mor, Segev Kalfon, Nimrod Cohen, Maxim Herkin, Eitan Horn. Fileira de baixo, da esquerda para a direita: Matan Zangauker, Bar Kupershtein, David Cunio, Ariel Cunio, Tamir Nimrodi, Pinta Nattapong | Foto: Reprodução/Fórum das famílias dos reféns

Os esforços e as palavras dos ex-reféns mobilizam a atenção internacional — muito mais, vale dizer, do que qualquer fala do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. Além disso, ao “adotar” a luta por um refém específico, individualizam a vítima, dando-lhe um nome e um rosto e criando, assim, um maior impacto junto ao público em geral. Esse é um envolvimento doloroso e, por isso, surpreendente. A tendência mais natural nessa situação seria que os libertados buscassem uma distância segura desse tema para poderem se dedicar à própria recuperação. 

Estão, no entanto, fazendo justamente o contrário, certamente por solidariedade e, também, como um inconsciente método terapêutico: o fim do drama dos reféns ainda presos em Gaza é, segundo os médicos, a grande porta de saída do trauma que permitirá a cada um iniciar o seu processo individual de recuperação emocional e psicológica. 

O doutor Blumenfeld explica que “qualquer processo de reabilitação a primeiramente pela interrupção do trauma. No caso de um incêndio ou de um afogamento, por exemplo, o primeiro o é tirar a vítima da situação traumática — ou seja, do fogo ou da água. No caso desses ex-reféns, eles continuam emocionalmente presos nos túneis na medida em que há outros, conhecidos ou não, ainda vivendo essa tragédia. Eles só conseguirão iniciar sua reabilitação quando todos estiverem fora de lá”. 

Eli Sharabi, ex-refém israelense libertado pelo Hamas em Gaza, usa um pingente com a inscrição ‘Bring Them Home Now’, ou ‘Traga-os para casa agora’, enquanto fala com membros da mídia antes de seu discurso em uma reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas, na sede da ONU em Nova York, EUA (20/3/2025) | Foto: Reuters/Mike Segar

De Viena ao Japão

Os esforços dos ex-reféns são incessantes e ultraam as fronteiras nacionais. Tal Shoham, que sobreviveu a mais de 500 dias nos túneis, viajou para Viena neste mês para contar sua experiência a diplomatas e embaixadores da ONU e exigir pressão internacional pela libertação dos reféns restantes. 

Em seu discurso, citou especialmente Guy Gilboa Dalal e Evyatar David, sequestrados no Festival Nova, com quem conviveu durante vários meses em cativeiro. Os dois jovens, amigos desde a infância, foram protagonistas de uma das ações de terror psicológico mais cruéis realizadas pelo Hamas nessa guerra: dentro de uma van, eles puderam assistir à cerimônia teatral de libertação de Shoham e também ser vistos por ele. A cena torturante dos dois implorando pela liberdade foi gravada pelo Hamas e divulgada em seguida em Israel.

 
 
 
 
 
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Emily Damari, cidadã israelo-britânica, reuniu-se com o primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer, em janeiro. Sequestrada de sua casa no kibutz Kfar Aza e mantida prisioneira por 15 meses, ela descreveu-lhe como foi mantida em diferentes instalações da UNRWA, o que levou Starmer a pedir uma investigação a respeito das doações que o país faz a esse órgão da ONU. Na ocasião, ela pediu que o governo britânico atuasse pela liberação de seus dois melhores amigos (e vizinhos), os irmãos Ariel e David Cunio.

Outro exemplo, talvez o mais proeminente de todos, é Noa Argamani, cujo sequestro foi registrado por câmeras do Hamas, tornando-se um dos principais símbolos do desespero das vítimas: ela foi incluída na lista das cem pessoas mais influentes de 2025 da revista Times na categoria “Líderes”, lado a lado com Donald Trump e Elon Musk. Primeira ex-refém a discursar no Conselho de Segurança das Nações Unidas, Argamani reuniu-se pessoalmente com o presidente americano, participou da Conservative Political Action Conference (AC), nos Estados Unidos, e de eventos no Japão e na África do Sul. Em todas as ocasiões, compartilhou sua experiência e apelou pela libertação dos demais reféns — incluindo seu companheiro, Avinatan Or, sequestrado, como ela, no Festival Nova.

Noa Argamani foi sequestrada pelo Hamas no Festival Nova, em 7 de outubro. Em um dos primeiros vídeos do massacre divulgados pelo Hamas, ela é levada em uma motocicleta e grita: ‘Não me matem!’. Ela estende os braços em direção ao namorado, Avinatan Or, que também foi sequestrado | Foto: Reprodução/Redes Sociais
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A decisão de encampar essa batalha é saudável e fortalecedora, segundo Iris Gavrieli Rahabi, membro da entidade First Line Med (FLM), um grupo de 450 psicoanalistas que prestam atendimento aos sobreviventes do 7 de outubro e a seus familiares. “Os reféns libertados podem encontrar em si mesmos o impulso para começar seu processo de recuperação usando a própria resiliência. Quando você entende que sobreviveu ao inferno, isso pode lhe dar uma enorme força”, afirma. 

Ainda assim, segundo o doutor Blumenfeld, a maior parte deles enfrenta a “culpa do sobrevivente”, uma síndrome ligada à culpa por haver sobrevivido a uma grande tragédia, ao contrário de muitos outros que morreram. 

O inferno construído pelo Hamas

As histórias sobre o período de cativeiro estão vindo à tona em conta-gotas, o que faz com que, até o momento, tenha-se uma visão apenas parcial sobre o que os reféns vivenciaram e quais serão as repercussões, presentes e futuras, em seu universo interior. “A reabilitação mental é muito mais complicada do que a física, que pode ser descoberta por meio de exames laboratoriais, de imagem etc”, explica Blumenfeld. “Aliado a isso, cada um tem seu ritmo e faz suas próprias escolhas, conscientes ou não: uns falam muito e outros, nada. Cada um decide por si só o que fazer e como lidar com suas memórias e experiências”. 

Entre as informações mais contundentes colhidas até o momento, sabe-se que parte dos reféns foi mantida em jaulas, enquanto outros foram acorrentados por meses em locais escuros, imundos e sufocantes. Óculos e aparelhos de audição foram removidos. Por não haver espaço para se movimentarem, sofrem de inflamações crônicas e atrofia. Eles também não tinham voz: não podiam decidir quando ir ao banheiro, e não tinham o a comida, água ou produtos de higiene básicos. Eram impedidos de falar ou chorar, inclusive as crianças. Para muitos, era impossível saber se era dia ou noite.

Imagens divulgadas pelo Exército israelense dizem mostrar a entrada do ‘túnel do terror’, no pátio de um jardim de infância na província de Rafah, em Gaza, usado pelo Hamas como cativeiro (captura de tela de um vídeo sem data, divulgado em 11/4/2025) | Foto: Exército israelense/Divulgação via Reuters

“Sem luz natural e sem estimulação sensorial por meses, a memória se esvai e as pessoas alucinam”, explica a psicoanalista Meirav Roth. “Eles viviam segundo a segundo; cada segundo era uma eternidade e poderia ser o último. O senso de urgência e as cargas de adrenalina se chocavam contra as ordens dos captores de manterem-se silenciosos e submissos.” Isso explica a frase de um dos reféns libertados após 489 dias, Sagui Dekel-Chen, que comentou com sua mulher: “É curioso que no mundo de fora se contassem dias de cativeiro. Para mim, ei 43 milhões de segundos ali”.

Em busca da normalidade

Meirav Roth cumpre o importante papel de preparar e coordenar os profissionais dedicados ao atendimento psicológico dos ex-reféns e suas famílias, além de outras vítimas diretas do 7 de outubro. Sob seu comando estão dezenas de equipes formadas por centenas de enfermeiras, psicólogos, psicanalistas e assistentes sociais que acompanharão os pacientes por um prazo ilimitado, uma vez que é impossível prever quais serão os efeitos da brutalidade, do abuso moral e do cativeiro no médio ou longo prazo.

“A perda de controle sobre a própria vida impacta o senso de identidade do ser humano. Antes do dia 7 de outubro, essas pessoas tinham uma ocupação, hobbies, responsabilidades financeiras etc. Sem controle até mesmo do próprio tempo, a identidade se esvai. Até agora, a maioria das mulheres libertadas (a maior parte na primeira negociação de cessar-fogo, em novembro de 2023) não conseguiu retornar ao seu trabalho anterior. As crianças também estão travando uma batalha dura para recuperar um mínimo de normalidade. E vale lembrar que ainda há muitos que aguardam a libertação de seus familiares, amigos e conhecidos, vivos ou mortos”, explica Blumenfeld.

Parentes e apoiadores dos reféns sequestrados no ataque de 7 de outubro de 2023 participam de um jantar simbólico de Seder, no início do feriado judaico da Páscoa, em Tel Aviv, Israel (12/4/2025) | Foto: Reuters/Joyce Zhou

O médico também conta que os ex-reféns estão ando por um processo de reaprendizado da autonomia. Uma das primeiras ações nesse sentido foi empregada assim que a Cruz Vermelha entregou-os ao exército israelense: os soldados só deveriam segurar suas mãos ou tocá-los depois de pedir permissão, de forma que eles pudessem fazer uma escolha pela primeira vez após o longo período de cativeiro. Segundo a psicanalista Roth, “embora esses pacientes se mostrem ivos e complacentes, eles não confiam no entorno. Confiança é a parte mais difícil de ser restabelecida. Em lugar dela há um vazio, um buraco negro em que sentem que não fazem mais parte da humanidade ou de qualquer outra coisa”.

A quebra da confiança é um mal compartilhado entre os 10 milhões de cidadãos de Israel. Há ainda muitas perguntas a respeito das falhas de segurança que os conduziram ao tormento dos últimos 18 meses, e a sociedade israelense está francamente cansada de esperar — não apenas pelos reféns, mas também por respostas.

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3 comentários
  1. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Esse drama é especialmente tocante, dilacerante! Que Deus tenha misericórdia e ajude essas sofridas vítimas de tanta crueldade.

  2. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Essa tragédia ocorrida com o povo israelense é para nós brasileiros duplamente triste pela posição assumida pelo DESgoverno brasileiro de apoio ao grupo terrorista Hamas.

  3. Themis Regina França Koteck
    Themis Regina França Koteck

    Dilacera o coração , a leitura deste artigo . O que aram estes pobres israelenses e ainda assim , tão in compreendidos , por uma parcela do mundo !

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