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Foto: Revista Oeste/IA
Edição 265

O que os nazistas teriam feito com as redes sociais?

O regime nazista consolidou-se com o 'controle social' do rádio e da imprensa

Flávio Gordon
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Em junho de 2021, em palestra no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), o prestigiado jurista Francisco Rezek fez a seguinte observação sobre a presente situação do Supremo Tribunal Federal (STF), onde foi ministro durante 12 anos: “Há um excesso de autoridade convivendo com a escassez de leitura”.

Como não pensar nessas palavras ao ver um desses palpiteiros de toga, no caso Alexandre de Moraes, anunciar que “os nazistas teriam conquistado o mundo se tivessem o ao X”? A frase seria inofensiva se dita por um militante de extrema esquerda no centro acadêmico de alguma universidade federal brasileira. Mas se revela perturbadora quando proferida por um ator político com poderes para, tomar medidas arbitrárias – como o fechamento da referida rede social.

Se tivesse realmente lido sobre o nazismo (em vez de apenas usá-lo como arma política para justificar a perseguição a adversários), Alexandre saberia que, embora não contassem ainda com as redes sociais, os nazistas contavam com o rádio, e dele fizeram amplo uso como arma de propaganda em massa. O que nos leva imediatamente à pergunta: isso lá seria motivo para condenarmos o rádio enquanto meio de comunicação?

Alexandre de Moraes: “Os nazistas teriam conquistado o mundo se tivessem o ao X” | Foto: Antonio Augusto/STF

Não, os nazistas não teriam conquistado o mundo se tivessem o ao X. Em sua época, eles tiveram o ao que havia de mais moderno em termos de comunicação de massa — o rádio e o cinema. E o que eles fizeram foi exatamente o que pretende Alexandre de Moraes em relação às redes sociais: restringir-lhes o o de críticos, opositores e dissidentes. Portanto, o que os nazistas teriam feito com o X seria o mesmo que fizeram com o rádio e o cinema – ambos “regulamentados” e “editados” pelos próceres do Reich, que proibiam todo e qualquer “discurso de ódio” contra o regime.

Não custa lembrar que o regime nazista consolidou-se apelando a uma lógica defensiva e, portanto, de exceção. O que se alegava querer defender à época não era, obviamente, a “democracia”. Os nazistas não teriam essa cara de pau. O pretexto então usado foi a segurança do Reich e do “povo” alemão. Depois do famigerado Incêndio do Reichstag (uma espécie de 8 de janeiro avant la lettre), Hitler e seus acólitos alegaram que as normas até então vigentes na Alemanha durante o período de Weimar deviam ceder às prioridades e prerrogativas da razão de Estado.

‘Medidas emergenciais de curto prazo’

Assim é que, no dia seguinte ao incêndio, 28 de fevereiro de 1933, o recém-eleito chanceler Adolf Hitler persuadiu o presidente Hindenburg a um decreto “pela proteção do povo e do Estado” suspendendo as sete seções da Constituição que garantiam as liberdades individuais e civis. Apresentado como “medida defensiva contra os atos de violência dos comunistas que punham em perigo o Estado”, o decreto estabelecia que:

“Restrições à liberdade pessoal, ao direito de livre manifestação de opinião, inclusive a liberdade de imprensa, ao direito de reunião e de associação; violações das comunicações privadas postais, telegráficas e telefônicas; e mandados de busca domiciliar, ordens de confisco, bem como restrições à propriedade também são permitidos além dos limites legais prescritos em outras circunstâncias.”

No livro Backing Hitler: Consent and Coercion in Nazi , o historiador Robert Gellately comenta sobre o episódio:

“O governo insistia em dizer que reagia contra uma ameaça revolucionária, a qual requeria medidas emergenciais de curto prazo. Assegurava constantemente o público de que, uma vez ada a crise, o império da lei e as liberdades seriam restituídos na Alemanha. Restava óbvio, porém, mesmo ao tempo em que essas vagas promessas eram feitas, que as inovações introduzidas seriam características permanentes da ditadura de Hitler.”

Sim, os nazistas alegaram inicialmente que as medidas de força seriam “excepcionalíssimas”, até que a ameaça às instituições e ao Estado fosse devidamente coibida. O resto, como se diz, é história. E essa história mostra que o problema dos nazistas não foi o de terem tido o a meios de comunicação de massa. Mas justamente o de pretenderem que esse o fosse exclusividade sua. Assim agem os tiranos — os de ontem bem como os de hoje.

Capa do livro Backing Hitler: Consent and Coercion in Nazi , do historiador Robert Gellately | Foto: Divulgação

A Lei de Imprensa do Reich

Como detalha William L. Shirer no clássico Ascensão e Queda do Terceiro Reich, os nazistas empenharam-se metodicamente no controle dos meios de comunicação da época, com vistas à imposição de uma completa uniformidade de opinião. Os editores dos jornais de Berlim e os correspondentes da imprensa nacional, por exemplo, eram convocados diariamente ao Ministério da Propaganda para receber instruções diretas de Goebbels ou seus assessores. Definiam-se ali quais notícias poderiam ser divulgadas ou censuradas, a forma como deveriam ser redigidas, as manchetes apropriadas e as campanhas que precisavam ser promovidas. Também se determinavam o tom e o conteúdo dos editoriais desejados pelo regime.

A Lei de Imprensa do Reich, promulgada em 4 de outubro de 1933, transformou o jornalismo em uma profissão regulamentada pelo Estado. O exercício da função ou a exigir cidadania alemã, ascendência ariana e a proibição de casamentos com judeus. O artigo 14 da legislação estipulava que os editores deveriam impedir a publicação de qualquer material que pudesse confundir a opinião pública (“desordem informacional”), contrariar os interesses do Estado ou enfraquecer a força interna e externa do Reich, sua unidade nacional, defesa militar, cultura ou economia. A norma serviu para silenciar veículos e jornalistas opositores ou os que se recusavam a aderir ao regime.

Nesse contexto, um dos primeiros jornais a fecharem as portas foi o Vossische Zeitung, fundado em 1704 e amplamente respeitado, com contribuições históricas de figuras como Frederico, o Grande, Lessing e Rathenau. Considerado um dos mais influentes da Alemanha, comparável ao Times de Londres e ao New York Times, o jornal tinha uma orientação liberal e pertencia à Casa Ullstein, de propriedade judaica. Após 230 anos de circulação ininterrupta, foi fechado em 1º de abril de 1934. Muitos outros veículos tiveram o mesmo destino.

Joseph Goebbels foi ministro da Propaganda na Alemanha Nazista entre 1933 e 1945 | Foto: Wikimedia Commons

O ‘controle social’ do rádio

O rádio e o cinema também foram rapidamente instrumentalizados para a propaganda estatal. Como se sabe, Goebbels via o rádio como o veículo mais poderoso de influência na era moderna e, por meio do departamento de radiodifusão de seu ministério e da Câmara do Rádio, exerceu controle absoluto sobre as transmissões. Como? É simples: exigindo a demissão (e a prisão) de profissionais de comunicação não alinhados (política ou racialmente) ao Reich e ordenando o fechamento de rádios independentes. Tudo regulamentado. Tudo em defesa do bem político de ocasião. Tudo para impedir os “ataques às instituições”, a “desinformação” e o “discurso de ódio”.

Enfim, o ex-ministro Rezek tem mesmo razão. Se pode haver algo talvez até pior do que uma autoridade sem freios, é a ignorância sem limites. E, quando ambas se juntam, o mundo fica um pouco pior…

Leia também “Racionalistas, Zizianos e outros gnósticos modernos”

9 comentários
  1. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Artigo necessário

  2. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    A semelhança entre os atos do Reich e os praticados pelo STF são análogos a irmãos gêmeos univitelinos.

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Gostei do termo palpiteiro de toga, cai bem na atual composição da gangue suprema.

  4. Carlos
    Carlos

    Terão os tiranos do presente o mesmo fim dos tiranos do ado?

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    O Hitler é o alexandre e Goelbels é o Sidônio adefuntado

  6. Ronaldo Rodrigues Rosa
    Ronaldo Rodrigues Rosa

    É impressionante como os autoritários brasileiros se inspiraram no Nazismo.

  7. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Esse artigo de Gordon é leitura obrigatória em tempos sombrios ,onde a censura e a tirania se estabeleceram contra dissidentes de um regime brutal, ignorante e corrupto. A lucidez da Revista Oeste também foi perseguida,mas com persistência venceram a batalha. Parabéns ao grande colunista Flávio Gordon, concordo plenamente com o.ex ministro Rezek a ignorância e o excesso de poder destroem nosso País.

  8. Denis R.
    Denis R.

    Judiciário partidário (gente sem voto que quer governar), autoritário e que não conhece história querendo ensinar a população a melhor forma de ser salvar. Só pode ser brincadeira!

  9. Emilio Sani
    Emilio Sani

    sem saber que está olhando num espelho, X sempre ‘reflete’: olha um fascista, um nazista…

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