Depois do anúncio da nova política comercial dos Estados Unidos — e, para que não restasse dúvida, feito pelo próprio presidente Donald Trump —, o mundo fora dos EUA quase parou. Nestes últimos tempos, esteve cambaleante à procura de um refúgio em algum outro acordo comercial pelo mundo para chamar de seu, o que, sabemos, ou estava paralisado havia anos ou não era crível no curto prazo.
Sem uma alternativa à mão diante da aplicação de tarifas de importação que mexe com lucros, cadeias globais de suprimentos, linhas inteiras de produção e a vida como queriam que continuasse a ser, sem levar em conta o novo governo e o que decidiu o eleitor americano, analistas econômicos e jornalistas viciados em desabonar o “trumpismo” sob qualquer pretexto declararam guerra midiática ao governo da maior potência do planeta. Chamar o presidente norte-americano de “descontrolado” foi o mais leve que se ouviu. O debate democrático que os Estados Unidos, agora sob Trump, voltaram a defender incondicionalmente permite isso. Críticas são livres, inclusive as mais ácidas. Muito diferente do que acontece na China.
Mas, como em um debate há dois lados, o outro ponto é revelador da idiossincrasia do lado mais mal-humorado dessa discussão: o mundo ainda é irremediavelmente dependente do mercado consumidor de 340 milhões de pessoas com alto poder de compra que só os Estados Unidos têm. É um fato inalienável que ninguém consegue contestar. Aliás, os que estão fora dos EUA estão reclamando justamente para continuar a ter o a esse mercado sob módicas alíquotas de exportação. Então, antes de irmos adiante, uma pergunta se faz necessária: o que o mundo deixou de fazer nestes últimos 10, 20, 30, 40 anos ou mais, para continuar precisando saber o que o presidente americano tomou no café da manhã antes de decidir o que fazer? É um caso de dependência crônica praticamente estabelecido. Que remédio deixaram de tomar? Fato é que, diante na nova realidade, chefes de governo e seus diplomatas tentaram acelerar acordos mundo afora. Foi assim com o acordo Mercosul-União Europeia — em gestação há mais de 20 anos e com os ses jogando contra sempre — ou com o acordo asiático entre China, Japão e Coreia do Sul — paralisado há cinco anos e cheio de intrigas internas. Nenhum se mostrou possível como resposta às medidas do novo governo da Casa Branca.

Sem nada à mão porque não fez acontecer, o mundo foi exposto à realidade do jeito Trump de fazer as coisas: em alta tensão, com ruptura controlada e expondo as fragilidades dos parceiros na Europa, no México, no Canadá, na América do Sul e na Ásia, China inclusa, com argumentos em defesa dos interesses do eleitor americano que o elegeu. Economia é um negócio tão feito de política quanto a política é feita de economia. E, no melhor estilo de xerife do mundo que comanda um PIB de US$ 30 trilhões, fez todo mundo ir a Washington para negociar com ele, na mesa da Casa Branca. Tanto que, mesmo quando faz movimentos de recuo, como agora, ao dizer que as tarifas contra a China serão bem menores que as alíquotas que já chegam a 145% ou nos 90 dias de armistício comercial, anunciado semanas atrás para quase todos os outros países, mantém o protagonismo.
É vital entender que Donald Trump é um jogador que não tem pudores em voltar atrás, que não hesita em aceitar uma eventual pequena derrota para reavaliar a estratégia, desde que esteja no comando. E a barulhenta crítica internacional de acadêmicos e jornalistas de ar-condicionado não o incomoda. Trump parece saber exatamente o valor das cartas que tem sem precisar adivinhar que seus críticos dependem de seu mercado.
E é de acordo com as repercussões internas que Trump avança ou recua, bate mais forte numa declaração ou sinaliza conversas de um acordo com os chineses. Este é o jogo, o das duas estrelas do comércio global: EUA e China. Se não entender essa geopolítica particular, mas que afeta cada canto do globo terrestre e uma série de outros interesses de cada um deles, a análise se desvia dos fatos, submete-se a paixões. É o cenário doméstico de cada um que pauta as ações externas. E são atores de realidades bem diferentes, a começar pelas liberdades ou não em cada um dos lugares.

Comecemos pelo híbrido chinês de ditadura política fechada com alguma economia aberta de mercado. Qual é a situação real do gigante asiático?
Dado o regime autoritário que comanda o país com mão de ferro, nada é completamente aferível nos indicadores chineses. Tampouco se tem liberdade para checar, o que causa espanto ao se constatar que parte da mídia parece torcer para a China nesse embate comercial. Com que dados? De qualquer forma, algumas evidências mostram que o modelo chinês, que já foi capaz de crescer 15% ao ano, parece estar se exaurindo. A própria retração do PIB nos últimos anos, embora ainda positivo, é preocupante. Há um teto para se manter crescendo com base apenas em comércio exterior, que hoje está em risco. Do outro lado, o mercado interno chinês, embora potencialmente grande, é incapaz de absorver sequer parte do excedente que seu imenso parque industrial produz, o que limita uma expansão rápida dentro de casa. Um nome que explica tudo isso: Evergrande, a gigante do setor de construção, hoje liquidada e que já foi um orgulho chinês. Endividada e sem apresentar um plano de reestruturação factível, apesar de o governo de Pequim tentar esconder o problema, um tribunal de Hong Kong decretou a falência da empresa, em janeiro de 2024, depois de anos se arrastando com milhões de moradias sem compradores. O caso trouxe um imenso impacto ao mercado imobiliário chinês, ao de construção civil, e à economia como um todo, e se tornou emblemático sobre os problemas internos e a dependência da China da demanda exterior.
Nos Estados Unidos, sob a égide da Primeira Emenda da Constituição, tudo pode ser dito, reclamado e criticado aos quatro cantos, porque é assim numa democracia. Dados públicos e debate livre permitem aos críticos do tarifaço de Trump apontar os dedos para tudo da vida americana e uma possível insustentabilidade da ousada política comercial em questão. A volatilidade da Bolsa provocou queda de valor das empresas americanas. Alguns números apontam que cada acionista viu suas ações caírem em torno de 18% pela trava momentânea do mercado externo e pelas medidas protecionistas. Num país em que muitas aposentadorias são feitas de ações de empresas e seus dividendos, qualquer movimento de baixa afeta o cidadão da Costa Leste à Oeste, dos estados do norte aos que fazem divisa com o México. Internamente, há também divisões entre os principais assessores de Trump. Scott Bessent, o poderoso secretário do Tesouro, é o mais sensato, mas não se furtou a dizer que o nível das tarifas é insustentável. O influente Elon Musk já chamou o conselheiro da Casa Branca e defensor ferrenho das tarifas, Peter Navarro, de “imbecil”, ao se defender da acusação de que teria interesses ao ser contrário à escalada da guerra tarifária.

Resumidamente, são esses os dois cenários que interessam. A China sabe do barulho que causa na economia americana, justamente pela democracia que existe nos EUA. O fluxo de manufaturados a baixo custo ou o debate sobre as tarifas, tudo é público e discutido sem limites.
Por outro lado, o regime fechado chinês e a lembrança da dependência de insumos hospitalares que impôs ao mundo durante a pandemia fazem o cidadão americano ponderar o recente conflito com um olhar não apenas de protecionismo comercial, mas para se proteger do “inimigo”, tal como na guerra fria. Veja que, apesar das duras críticas da imprensa simpática ao Partido Democrata ou ao globalismo, das incertezas do mercado de ações ou da queda das bolsas, do risco de pressões inflacionárias no futuro, o presidente norte-americano ainda mantém popularidade resiliente. Sobretudo porque a China está mais exposta do que se imagina ao reagir com medidas muito além de seu decantado pragmatismo. E os argumentos de Trump se baseiam em dizer que o esforço nacional agora é para recuperar o melhor do “american way of life” depois.
Notadamente, é uma aposta em um discurso que não pode demorar muito para dar resultado. Mas também não há nada mais americano que isso. Afinal, quem senão a China para ser descrita como a grande ameaça ao que defendem e acreditam como nação os americanos?

A inflexão desse sentimento pode acontecer, como é previsível, na economia. Se os efeitos das tarifas, ainda contidos, punirem forte o emprego, a renda, o custo de vida e as expectativas das pessoas, o tranco político não tarda. Mas ainda assim o mal-estar econômico das famílias precisaria perdurar por meses, sem sinais de evolução. Não há sinais disso no horizonte. Não por ora. E esse tempo é muito precioso para os americanos e para o mundo.
Por fim, voltando à análise da chacoalhada geopolítica pela qual a o planeta, o relevante politicamente é que abster-se de entender Trump e suas ideias, não levar em conta a essência dos ideais americanos que associa às medidas do seu “Make America great again”, a capacidade de mobilização que comprovou na campanha, é um equívoco. Porque é de economia, de política, mas essencialmente de americanos que estamos falando.
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Errático? Parece que vc não entendeu nada!
Piotto faz muita falta no Oeste sem Filtro.
Exato, estamos falando de americanos, portanto, eles devem tomar decisões favoráveis a eles.
No mais, a China tenta silenciar internamente mas tem situações que vem sendo difíceis de conseguir esconder, como este caso da Evergrande.
Somente Trump mesmo, atualmente, para comprar esta nobre briga.
A China é uma ditadura….não se pode esperar atitudes dela que seriam emanadas de um país democrático.
Os Estados Unidos, ao contrário, é uma democracia, cujo comportamento atual, errático, assusta tanto as democracias liberais como os “tradicionais” regimes autoritários, além de ir promovendo uma mudança geopolítica e econômica sem
grande indicação de sucesso.
Como sempre um ótimo texto do Piotto. Bravo!