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Sementes da árvore de pau-brasil, símbolo da biodiversidade e da história ambiental do Brasil | Foto: Shutterstock
Edição 267

A exploração do pau-brasil preservou a Mata Atlântica

Por quatro séculos, leis, controle e manejo permitiram a exploração sustentável. A gestão lusitana do pau-brasil poderia inspirar a exploração racional e o manejo na Amazônia

Evaristo de Miranda
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Em 3 de maio comemora-se o Dia do Pau-Brasil (Paubrasilia echinata), árvore símbolo nacional. Sua exploração pelos portugueses foi um exemplo de gestão sustentável das florestas, e não de desmatamento. Na maioria dos países europeus, africanos e asiáticos, a defesa efetiva das florestas e da natureza é recente. Preservação florestal no Brasil vem de longa data.

Desde o início do povoamento português, as Ordenações Manuelinas e Filipinas criaram regras e limites para explorar terra, água e vegetação. Em 1550, havia uma lista de árvores reais, protegidas por lei. Isso deu origem à expressão “madeira de lei”.

Em 1530, o pau-brasil representava 90% das exportações brasileiras e 5% da receita total do tesouro português. Ao contrário de falsas narrativas sobre sua “exploração predatória, desde o início da colonização” ou seu desaparecimento “devido à exploração predatória, desde o Descobrimento”, a extração do pau-brasil por Portugal foi muito racional. Graças a ela, se manteve grande parte da Floresta Atlântica até o final do século 19. O pau-brasil não foi causa do desmatamento da Mata Atlântica, fato bem posterior.

Exploração do pau-brasil. Cosmografia Universal de André Thevet, 1575 | Ilustração: Wikimedia Commons

Em 1605, o Regimento do Pau-Brasil estabeleceu o direito de uso das árvores, e não sobre as terras, consideradas reservas florestais da Coroa. O concessionário podia explorar árvores. Cultivar a terra era proibido. Ao integrar critérios econômicos, políticos e silviculturais, o Regimento do Pau-Brasil deu às autoridades os instrumentos essenciais ao planejamento e à gestão dos contratos de concessão florestal. Quem sabe disso?

Estabelecidas nas capitanias, registradas em livros, íveis de auditoria, as autorizações definiam o corte somente com licença, cotas de exploração anual e estímulo à regeneração natural das árvores por métodos silviculturais, rotação da exploração e delimitação de áreas reservadas. O regimento estabeleceu duras penas de prisão, degredo para Angola e até morte a quem cortasse sem licença ou excedesse o limite contratado.

Mando, que nenhuma pessoa possa cortar, nem mandar cortar o dito páo brasil, por si, ou seus escravos ou Feitores seus, sem expressa licença, ou escrito do Provedor mór de Minha Fazenda, de cada uma das Capitanias, em cujo destricto estiver a mata, em que se houver de cortar; e o que o contrário fizer encorrerá em pena de morte e confiscação de toda sua fazenda.”

Quem ensina na escola sobre o Regimento do Pau-Brasil e essa gestão racional?

Com o regimento, o planejamento da oferta, o controle da pressão sobre as populações da árvore no tempo e espaço, e os cuidados com a regeneração reduziram consideravelmente os riscos de esgotamento desse recurso.

Mapa do número das toras de pau-brasil na Capitania de Ilhéus, em 1780 | Foto: Wikimedia Commons

O comércio do pau-brasil era exclusividade da Coroa. Dom João VI, ao promover a abertura dos portos às nações amigas, autorizou o comércio de quaisquer gêneros e produções, à exceção do pau-brasil. Em 1808, o Banco do Brasil, recém-criado, ou a ter controle e comissão na venda da madeira de tinturaria. Na Independência, o pau-brasil se tornou monopólio nacional, e sua venda, destinada a saldar a dívida externa com a Inglaterra.

Em 1850, a descoberta do corante anilina na Alemanha e sua fabricação industrial retirou paulatinamente o pau-brasil do mercado. Um produto da química moderna e industrial substituiu a cor natural do pau-brasil. Em 1875, foi registrada a última exportação.

O tom vermelho do pau-brasil marcou o comércio colonial e teve papel central na formação histórica e econômica do Brasil | Foto: Shutterstock

O pau-brasil não entrou em extinção pela devastação das matas no período da Coroa portuguesa e do Império, como propalado equivocadamente em manuais, artigos e livros de história. Por quatro séculos, leis, controle e manejo permitiram sua exploração sustentável. A gestão lusitana do pau-brasil poderia inspirar a exploração racional e o manejo na Amazônia.

O mesmo cuidado ocorreu com os manguezais, explorados por seus taninos pela indústria do couro. Em 10 de julho de 1760, um alvará de D. José I os protegeu e limitou a exploração. Aos infratores impunha pena de três meses de prisão e multa. As câmaras municipais foram notificadas a aplicá-lo. Em 1797, cartas régias consolidaram as leis ambientais daquele tempo: pertencia à Coroa toda mata à borda da costa, com rio desembocando ou capaz de permitir a agem de jangadas transportadoras de madeiras.

A criação dos cargos de juízes conservadores, aos quais coube aplicar as penas previstas na legislação, foi outro marco em favor das florestas. As penas eram de multa, prisão, degredo e até pena capital para os incêndios dolosos. Em 1799, surgiu o Regimento de Conservação das Matas do Brasil, da rainha D. Maria I, com regras rigorosas para a derrubada de árvores e outras restrições à implantação de roçados.

Em 1799, D. Maria I criou o Regimento de Conservação das Matas do Brasil, com regras rigorosas contra a derrubada de árvores e punições severas para incêndios dolosos | Foto: Wikimedia Commons

O desmatamento, do século 17 ao 19, limitou-se a pontos na costa. Em quatro séculos de Coroa Portuguesa e Império foram extraídas 500 mil árvores de pau-brasil. A exploração mais intensa ocorreu no século 18: cerca de 322 mil árvores, segundo Yuri Tavares Rocha, da USP, depois de consultar quase mil livros e documentos aqui e em Portugal. Enquanto isso, Floresta Amazônica e matas de araucária dormiam em berço esplêndido.

Em 13 de julho de 1808, D. João VI criou o Real Horto Botânico do Rio de Janeiro. A fazenda incluía a Lagoa Rodrigo de Freitas. Desapropriou e pagou a família Rodrigo de Freitas. Com a República, mais de 90% desse tesouro vegetal foi retalhado, vendido e concedido para residências, prédios, rede de televisão, hipódromo, institutos de pesquisa etc. O Jardim Botânico original, tão bem cuidado por D. Pedro I e II, foi loteado em poucas décadas entre amigos e especuladores imobiliários da ré-pública. De 2,5 mil hectares, hoje está republicanamente reduzido a menos de 150.

Uma ordem, em 9 de abril de 1809, deu liberdade aos escravos quando denunciassem contrabandistas de pau-brasil. No Rio de Janeiro, o decreto de 3 de agosto de 1817 proibiu o corte de árvores em áreas circundantes às nascentes do Rio Carioca. Em 1830, em mais de três séculos, o total desmatado era inferior a 30 mil quilômetros quadrados. Hoje, desfloresta-se algo comparável a cada três anos. E há quem aponte o dedo ao ado e aos portugueses.

Em 1844, após uma grande seca, o ministro Almeida Torres propôs desapropriar sítios para plantar árvores e salvar mananciais na capital. De 1854 a 1856, terras foram desapropriadas com essa finalidade pelo ministro Couto Ferraz. Em 1861, com o Decreto Imperial nº 577, D. Pedro II criou, e plantou com o major Archer, as Florestas Protetoras da Tijuca e Paineiras.

O pensamento e a crítica ambiental brasileiros resultam de uma continuidade histórica de séculos, tradição intelectual única. A política florestal das Coroas Portuguesa e Brasileira logrou, por diversos mecanismos, manter a cobertura vegetal preservada até o final do século 19. O desmatamento brasileiro é fenômeno dos séculos 20 e 21.

A política florestal das Coroas Portuguesa e Brasileira preservou a cobertura vegetal até o século 19, com o desmatamento ocorrendo apenas nos séculos 20 e 21 | Foto: Shutterstock

De 1985 a 1995, em dez anos, a Floresta Atlântica perdeu mais de 1 milhão de hectares, superior a toda a área desmatada durante a Coroa Portuguesa. Em São Paulo, Santa Catarina e Paraná, a marcha para o oeste trouxe desmatamentos. Florestas de araucárias foram entregues pela ré-pública a construtores anglo-americanos de ferrovias, com as terras adjacentes.

Apesar de todo o desmatamento, o Brasil ainda é um dos países com a maior cobertura florestal nativa. Dos 100% das florestas originais, a África mantinha 7,8%; a Ásia, 5,6%; a América Central, 9,7%; e a Europa — o pior caso —, apenas 0,3%. Vale menção o plantio de florestas monoespecíficas para explorar madeira, celulose e uso turístico na Europa. Ninguém ignore: mais de 99% das florestas primárias europeias foram substituídas por cidades e plantações, para tristeza de ursos, linces, lobos, rabalvas e bisões.

O continente com a maior manutenção de florestas originais é a América do Sul (55%). Com invejáveis 70% das florestas primitivas, o Brasil tem autoridade para tratar esse tema frente às críticas dos campeões do desmatamento. Longe de encerrada no ado, a tendência se mantém. Se o desflorestamento mundial prosseguir no ritmo atual, o Brasil — quem menos desmatou — deterá no futuro quase metade das florestas primárias do planeta. Isso não será fonte de elogios, e sim de mais cobranças.

O país há de ter responsabilidade para reavivar, por meio de políticas e práticas duradouras, a eficácia das medidas históricas de gestão e exploração florestal. Deve abandonar o desastre da atual política ambiental na Amazônia, promotora de subdesenvolvimento sustentável e miséria glamourizada, e garantir outra gestão da floresta primária e do território.

O Brasil precisa abandonar a falha política ambiental na Amazônia, que promove o subdesenvolvimento e a miséria, e adotar práticas eficazes de gestão florestal para garantir um futuro sustentável e evitar o desmatamento na Amazônia | Foto: Shutterstock

O grande desmatamento é fruto do século 20 e obra da República. A ocupação lusitana desenvolveu exemplos de sistemas sustentáveis de exploração agroflorestal e pastoril, sem desmatar. Respeitou com sabedoria as condições ambientais, como na caatinga, no cerrado e nos pampas.

Carlos F. A. Castro, em sua tese de doutorado Gestão Florestal no Brasil Colônia (UNB, 2002), demonstrou: o desmate da Mata Atlântica ocorreu no século 20. O desmatamento entre 1945 e 1960, a cada cinco anos, foi superior ao total desflorestado entre 1500 e 1930.

Sob a Coroa Portuguesa, a ampliação da área cultivada foi de 9 mil hectares por ano. Chegou ao máximo de 16 mil hectares por ano no início do Império. O desmatado para produzir açúcar, em mais de 300 anos, no momento da Independência, atingiu 14 mil quilômetros quadrados. Dada a extensão da Mata Atlântica, esse desmatamento pela cana foi irrisório (2%).

A exuberante Mata Atlântica na área protegida da Reserva Ecológica de Guapiaçu, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro | Foto: Shutterstock

A política florestal portuguesa e do Império lograram, por diversos, invejáveis e complexos mecanismos, manter a cobertura florestal até o final do século 19, com poucos locais significativamente alterados. Como assinala Carlos Castro, “em vez de imputar a Portugal a culpa por ter nos deixado uma ‘herança predatória’, talvez devamos aprender com as práticas conservacionistas que os portugueses preconizaram e tomarmos consciência de que a destruição das florestas brasileiras não é obra de 500 anos, mas principalmente desta geração”.

Leia também “Há 1,7 mil anos, o poder da conciliação”

11 comentários
  1. Cícero Ruggiero
    Cícero Ruggiero

    Fica a questão: se o Pau Brasil não desapareceu por causa da exploração lusitana, o que fez ele desaparecer? Ou não desapareceu?

  2. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Os descendentes de portugueses como eu agradecem ao grande conhecimento que o prof. Evaristo vem nos transmitindo a respeito da colonização portuguesa, que nossas escolas e os atuais donos do poder tanto criticam. O titular absoluto de nosso pais disse que a colonização portuguesa é a responsável pelo atraso em nossa educação, e outro recentemente nomeado ministro da CORTE, disse que “concordo até que os portugueses repatriem todos os imigrantes brasileiros que lá estão, devolvendo junto o ouro de Ouro Preto e ai fica tudo certo, a gente fica quite”. Dá para saber quem são basta procurar na internet.
    Vale dizer que um é neto de português (pesquisei na internet) e o outro (titular) de origens europeias desconhecidas.

  3. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Mais um excelente e esclarecedor artigo da lavra do Prof. Evaristo. Pena, que ainda, muitos no país não têm o a um conteúdo desse. Espero que um dia isso mude. Que não demore.

  4. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Rico conteúdo de Dr Evaristo. Parabéns!

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    O homem tem que desenvolver pra sobreviver e isso só se faz com tecnologia, o resto a terra cuida

  6. JOSE RODORVAL RAMALHO
    JOSE RODORVAL RAMALHO

    Este artigo deveria ser distribuído em todas as escolas e universidades do Brasil.

  7. Peter Alberto Fejer
    Peter Alberto Fejer

    Evaristo, não está na hora de você juntar todos estes artigos e publicar em forma de livro para podermos sempre reler, consultar e indicar para amigos e terceiros?

  8. PAULO CÉSAR SCANAVEZ
    PAULO CÉSAR SCANAVEZ

    Parabéns pela riquíssima aula. Prazer imenso ler e aprender com seus textos.

  9. Letícia Mammana
    Letícia Mammana

    Pela Revista Oeste, Evaristo de Miranda nos levou a explorar o rio Amazonas com Pedro Teixeira e logo nos transportou há 1700 anos atrás em Nicéia. Agora nos traz tanta informação desconhecida e histórica contra as narrativas mentirosas sobre o povoamento português, nesse espetacular artigo sobre o pau-brasil. Artigos como esse deveriam estar nos curriculuns escolares. Parabéns!

  10. Osmar Martins Silvestre
    Osmar Martins Silvestre

    Excelente artigo, como sempre, do prezado Evaristo de Miranda. O Brasil se esmera em distorcer a História e jogar em alguém a culpa do que não deu certo. Segundo a voz corrente, os portugueses são os culpados pelo que somos hoje como país. O presente artigo desmonta mais uma lenda brasileira, no caso, referente ao pau-brasil.

  11. RCB
    RCB

    Envergonha-me saber disso com mais de 70 anos de idade. O viés ideológico das questões ambientais tornou-se narrativa para ONGs abastecerem-se de doações estrangeiras para atividades ineficazes, irrelevantes e questionáveis, para gozo de seus doadores. Como defender nossa identidade de Nação soberana sem conhecer a própria história?
    Agradecido ao Dr. Evaristo pelo texto e dados reveladores. Lembrei-me do livro do saudoso Roberto Campos, “A Lanterna na Popa” que ilumina as ondas tragadas pelo navegar dos navios.

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