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Mario Vargas Llosa, escritor e político peruano | Foto: Reprodução
Edição 267

Faltou pouco

Francis encerrou a conversa que não tive com Vargas Llosa

Augusto Nunes
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Mario Vargas Llosa também não escapou do enterro de segunda — em cova rasa e na ala dos indigentes — com o qual órfãos do Muro de Berlim infiltrados no jornalismo estatizado tentam vingar-se do sumiço do mastodonte soviético. Espremidas em espaços raquíticos, informações paupérrimas só serviram para confirmar que os autores dos textos não sabiam direito quem estavam sepultando: todos se afogariam na própria estupidez caso tentassem cruzar dois parágrafos de Vargas Llosa. No dia seguinte, “críticos literários” incapazes de lidar com álbuns de figurinhas resolveram fuzilar o cadáver.

“O ficcionista peruano escreveu alguns livros de boa qualidade, mas se perdeu em análises políticas que continham pouquíssimos acertos e uma infinidade de bobagens”, decidiu um VAR de consoantes e vogais produzido pela USP. A “boa qualidade” lhe valeu o Nobel de Literatura e o tornou um dos mais premiados escritores da história. Tudo isso vale menos que zero desde o pecado irremissível cometido em 1971. Ao constatar que Cuba se transformara numa ditadura detestável como todas, e que o Fidel Castro que apoiara com entusiasmo não existia no mundo real, o democrata radical rompeu publicamente com a ditadura caribenha – e até o fim da vida combateu ditaduras à esquerda e à direita. O ficcionista virou apenas mais um nome na prateleira. Restou o reacionário extremista a neutralizar.

Vargas Llosa teve uma estreita relação — e uma ruptura abrupta — com Gabriel García Márquez, outra lenda da literatura latino-americana | Foto: Reprodução/Flickr
Vargas Llosa | Foto: Reprodução/Flickr

“Sou contrário a que divergências políticas se convertam em inimizades pessoais”, disse numa entrevista ao jornalista Ricardo Setti. “Isso me parece uma manifestação de barbárie.” Mas o Vargas Llosa elegante, gentil, cosmopolita e risonho convivia harmoniosamente com o peruano persistente, determinado, sem medo e bom de briga. Em vão, o pai autoritário fez o diabo para que o filho esquecesse a ideia de ser escritor. Achava aquilo “coisa de maricas e boêmios”. Era pouco mais que um adolescente quando escreveu a obra de estreia — a mão, usando uma caneta, como escreveria todas as outras. Nada a ver com apego a tradições e objetos antigos. Ele apenas gostava de escrever assim. Um conservador, aliás, não faria o que fez no parcialmente autobiográfico Tia Júlia e o Escrevinhador.

Parece mentira, mas ele tinha 19 anos quando se casou com Julia Urquidi, algumas primaveras a mais. Ela era irmã de uma mulher casada com um tio do escrevinhador Varguitas, algunha facilmente decifrável de Vargas Llosa. Ousadia nunca lhe faltou. Ele enfrentou a parentela enfurecida com a mesma bravura que esbanjaria depois de dizer a verdade sobre Cuba. Nenhuma surpresa, portanto. O que eu não poderia imaginar é que o mesmo livro contribuiria para impedir a concretização, em abril de 1995, do sonho perseguido anos a fio: conversar com Vargas Llosa ao menos por meia hora. Faltou pouco. Para ser preciso: faltou controlar o indomável Paulo Francis.

Eu estava em Porto Alegre porque dirigia a redação da Zero Hora, que publicava as colunas de Francis. Meu querido amigo estava lá a convite do Instituto de Estudos Empresariais, que desde 1988 organiza o Fórum da Liberdade, uma movimentadíssima sequência de palestras e debates. Francis figurava no elenco de palestrantes. Vargas Llosa também, informava a lista. “É hoje!”, exclamei ao ver o nome.

Francis e eu nos juntamos à multidão que buscava acomodar-se no salão de jantar. Avistei duas cadeiras vazias numa das mesas quadradas para quatro, sem lugar marcado. Ao sentar-me, ficou-me claro que chegara a minha vez. Francis estava à minha esquerda. Vargas Llosa, à direita. À minha frente, o economista Roberto Campos contemplava o infinito. Durante a tarde, Francis e eu tínhamos consumido várias doses de uísque. Antes mesmo de cumprimentarmos os dois companheiros de jantar laçamos o primeiro garçom que ava e pedimos mais duas doses. Campos, com expressão de cansaço, quis vinho. Vargas Llosa reivindicou um copo de água mineral.

— Para começar… — informou.

Não haveria continuação. Às voltas com um surto de surdez, Francis andava falando alguns decibéis acima da linha do grito. Empunhando o copo, ele contemplou Roberto Campos por meio minuto e, subitamente, soltou a voz:

— Quem diria, hein, Nunes!? Eu era comunista. Agora estou à direita do Roberto Campos!

O restante da mesa fez de conta que nada ouvira. Uns 30 espectadores nas proximidades não seguraram o riso. Nos dois minutos seguintes, Francis eou os olhos pela figura do escritor famoso. “Pois é…”, murmurou. Foi subindo o tom a cada sílaba. “Todo bonitão, cabelo de sobra, cada fio em seu lugar…” E então berrou: “Terno bem cortado, jeitão de gente fina… Mas fugiu com a tia, porra!”

Pedi a Francis que fosse comigo até o banheiro. Quando voltamos, Roberto Campos e Vargas Llosa tinham sumido. Nunca mais vi de perto o imenso escritor que partiu. Não houve aquela conversa de pelo menos meia hora. Nem haverá.

O escritor peruano Mario Vargas Llosa comparece à Feira Internacional do Livro em Guadalajara, no México (3/12/2009) | Foto: Reuters/Alejandro Acosta/Foto de Arquivo

Leia também “Os gigolôs da anistia”

19 comentários
  1. Juliana saad de carvalho
    Juliana saad de carvalho

    Adoro suas histórias! Um mundo que desapareceu, com todos esses nomes , sem substitutos. Conte mais, Augusto!

  2. Paulo César de Castro Silveira
    Paulo César de Castro Silveira

    procurem no youtube llosa mexico la dictadura perfecta octavio paz, é maravilhoso e curitnho o vídeo.

  3. Maria Aparecida Santana
    Maria Aparecida Santana

    Augusto Nunes que memória maravilhosa, muito fã do mestre

  4. Luiz fernando Chalet ferreira
    Luiz fernando Chalet ferreira

    O álcool une . E separa . Abre horizontes . E apaga a luz no final do túnel . Uma pena , Augusto . Seria bom sabermos realmente o que Vargas pensava atraves de vc .

  5. V.S.O.
    V.S.O.

    O gabinete do ódio só existe para a direita. A esquerda é paz e amor.

  6. Ricardo
    Ricardo

    Gostava do Francis, de sua ironia inteligente e agressiva, mas as vezes se excedia, diante de um gigante da literatura mundial que foi Vargas Llosa e outro não menos brilhante que foi Roberto Campos, deveria ter se contido, permitindo assim um encontro histórico da melhor literatura e do melhor jornalismo. Felizmente ainda temos você com o melhor jornalismo e seu material literário magnifico. Infelizmente os componentes daquela mesa mesmo deixando obras imortais, fisicamente não estão mais entre nós, fazem falta pela coragem, parabéns Augusto Nunes não é fácil sozinho combater o bom combate.

  7. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    kkkkk. Grande Augusto Nunes!

  8. JORGE LUIS
    JORGE LUIS

    É por essas e tantas outras, que os de idade avançada, que tem histórias para contar, sempre me fascinaram e fascinam!!!

  9. Luiz Gomes Jardim
    Luiz Gomes Jardim

    Que pena, Augusto. Whisky traz essas adversidades, tanto o bom quanto o ruim. Mas vale a pena, cheers!

  10. Galileu
    Galileu

    KKKKKK. Culpa dos Whiskys.

  11. Antonio Fernandes Kopf
    Antonio Fernandes Kopf

    Falta pouco para a ABL virar um chiqueiro.

  12. Aeduardo
    Aeduardo

    Augusto Nunes, uma coletânea de histórias vividas ao longo de seu tempo… Vez ou outra dá ciência de alguma delas. A dos 11 Presidentes já imortalizadas no livro lançado e que remetem quase sempre a boas risadas!
    Por falar em imortalizado, um despropósito a Míriam Leitoa analfa na ABL. A academia ficaria muito mais digna e certamente alegre compondo seu quadro com o AN de fardão! Torçamos para que alguma cadeira vague e elejam este nosso ídolo inesquecível para nas reuniões saborear também os chás por lá servidos! rsrsrsrs

  13. maisvalia
    maisvalia

    Hahaha, boa!

  14. Leonardo de Almeida Queiroz
    Leonardo de Almeida Queiroz

    A verve do Francis turbinada por uísques all free ! Pérolas! Que saudade de um Brasil que reunia sob o mesmo teto Dr Roberto Campos, Paulo Francis e o futuro mestre Augusto Nunes recebendo Vargas Llosa! Agora temos Anita recebendo Lady Gaga! Pára que eu quero descer!

  15. Roberto Fecchio
    Roberto Fecchio

    Grande Augusto Nunes. irador que sou dos três: você, Vargas Llosa e Francis, foi uma bela surprsa ler sobre esse encontro, com participação coadjuvante do ótimo Roberto Campos. Lamentavelmente deixo de a Oeste, impedido pela limitação imposta pelo meu salário de aposentado do INSS, não sem antes desejar e torcer para que continuem com esse belo exemplo de jornalismo independente e confiável.

  16. Rajas da Silva
    Rajas da Silva

    Belíssima história. Finíssima ironia. Parabéns.

  17. Carlos Pinto de Sampaio
    Carlos Pinto de Sampaio

    Que mesa, hein???
    Parabéns Augusto!!!

  18. Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva

    Inveja mata, não é mesmo?
    Vargas Llosa sabia disso muito bem e fazia lo que le daba en la gana y lo hacía con maestria. Para os invejosos, as batatas.

  19. Regtor
    Regtor

    Ah! Como Francis e Campos fazem falta !!!

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