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Foto: Revista Oeste/IA
Edição 267

Sob um Estado de medo

Há método no aparente sadismo com que Alexandre de Moraes mobiliza a força estatal sem eira nem beira contra indivíduos

Flávio Gordon
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Em audiência pública realizada no dia 30 de abril, a Comissão de Segurança Pública do Senado (CSP) debruçou-se sobre os áudios recém-vazados de Eduardo Tagliaferro. Tagliaferro é o ex-assessor de Alexandre de Moraes responsável por chefiar o departamento de censura à internet. Os áudios, referentes a uma conversa telefônica ocorrida entre Tagliaferro e o jornalista exilado Oswaldo Eustáquio no ano ado, haviam sido divulgados no início de abril pelo repórter português Sérgio Tavares (também vítima da polícia política do regime STF-PT).

Tavares esteve presente à audiência, assim como Glenn Greenwald, jornalista responsável pela série de reportagens da Vaza Toga. Em agosto de 2024 essas reportagens revelaram o modus operandi clandestino de Moraes e seus capangas — dentre eles o próprio Tagliaferro — na perseguição política a críticos e opositores do regime. Os depoimentos dos dois jornalistas (sintomaticamente, ambos de origem estrangeira) nos fazem recordar uma realidade perturbadora: o Brasil vive sob um estado permanente de medo. Um medo calculadamente imposto por um sujeito a quem foram concedidos poderes excepcionais, e que nenhuma instituição hoje se mostra capaz de controlar.

Eduardo Tagliaferro, então chefe da AEED, do TSE, e o ministro Alexandre de Moraes | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Escrevi “recordar” no parágrafo anterior porque, a despeito de sua imensa gravidade, aquilo que revelaram Greenwald e Tavares não tardou a cair em esquecimento. Os áudios divulgados pelo segundo — os quais mostram um ex-assessor de Moraes temendo por sua vida — nem sequer receberam a atenção devida. Esse esquecimento já é, em si mesmo, um sinal inequívoco do estado de medo. Assim também como a própria condição de realização da audiência pública na CSP, solenemente ignorada pelo depoente convidado Alexandre de Moraes, e transcorrida numa sessão com baixo quórum. Mais uma prova de que, descontada a resistência movida por uns poucos deputados e senadores, até o Congresso brasileiro, presidido por títeres ou reféns do STF, encontra-se paralisado pelo medo.

Tavares iniciou sua fala manifestando justamente estranhamento em relação à pouca repercussão dos áudios vazados de Tagliaferro. Afinal, na conversa com Eustáquio, Tagliaferro itia ter consciência da ilegalidade das ordens recebidas. Que havia tentado sem sucesso pedir exoneração, que gente do Primeiro Comando da Capital (PCC) poderia estar atrás dele e que até um primo teria recebido dinheiro para assassiná-lo.

Em seguida, o jornalista português lamentou que Tagliaferro não tivesse aceitado o convite para depor na audiência pública, pois teria a chance de explicar por que, aparentemente, seu plano de fuga do Brasil foi abortado e por que, desde a conversa com Eustáquio, nunca mais apareceu na imprensa para expor o que sabe. De acordo com o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), autor do requerimento para a oitiva de Tagliaferro, o ex-assessor pediu outra data para ser ouvido remotamente, o que sugere que talvez ele já não esteja no Brasil. Por enquanto, todavia, Tagliaferro também parece ter sido paralisado e silenciado pelo medo que paira sobre o país.

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Jornalista português Sérgio Tavares | Foto: Pedro França/Agência Senado

Mais um inquérito ilegal

Glenn Greenwald, por sua vez, relembrou o conteúdo das matérias da Vaza Toga, e também lamentou que parte dele tenha sido tão rapidamente esquecida ou que não tenha recebido a devida atenção. O jornalista contou que, ao procurar entrevistados do meio jurídico para as reportagens (incluindo gente poderosa), muitos negaram permissão à publicação das críticas que, privadamente, haviam feito sobre Moraes: “Tinham medo de quais seriam as consequências de criticar Moraes publicamente”.

Em seguida, Greenwald contou como Moraes agiu para impor esse clima de medo aos próprios jornalistas autores da Vaza Toga e ao veículo que as publicou, a Folha de S.Paulo. Adotando a mesma retórica política que usou em todos os seus inquéritos, Moraes sugeriu que também eles haviam ado a colaborar com a “organização criminosa” de “extrema direita” que tentava “minar a credibilidade das instituições”. Assim, os jornalistas foram incluídos em mais um inquérito ilegal criado para descobrir a identidade da fonte. “Ele sempre interpreta toda crítica, reportagem ou denúncia como um crime” — disse Greenwald. “Faço jornalismo que incomoda figuras de autoridade há muito tempo. Mas nunca vi jornalistas sendo formalmente incluídos numa investigação desse tipo.”

A solidão pública

A sessão de hoje na CSP do Senado me fez recordar de Um Dia Viveremos Sem Medo: A Vida Cotidiana Sob o Estado Policial Soviético, grande livro do historiador e economista Mark Harrison. O livro se insere numa linha de pesquisa que tem por antecessores obras exemplares, como o clássico de Robert Conquest sobre o grande expurgo stalinista (publicado ainda nos anos 1960, antes da abertura dos arquivos de Moscou), ou o livro de Orlando Figes sobre a vida privada na Rússia de Stalin.

O estudo documenta um período de quatro décadas de totalitarismo, com base no estudo de sete casos individuais de vítimas da polícia política soviética. A partir deles, o autor destrincha os princípios básicos sobre os quais a polícia política operou durante sua história, desde a revolução bolchevique de 1917 até o colapso da URSS, em 1991. Abrangendo uma vasta porção da paisagem geográfica soviética, das fronteiras manchurianas com a China aos limites da região báltica, as histórias são variações sobre um mesmo tema: em cada caso, algo acontece que dispara uma investigação, conduzida sempre de maneira pérfida e fraudulenta, de modo que a coisa escale até o aniquilamento completo da vítima.

Dentre os princípios do Estado policial elencados pelo autor, destaca-se a ideia de que “a ordem é criada mediante aparências”. Os dirigentes soviéticos sabiam ser impossível conhecer os pensamentos mais íntimos dos indivíduos. Portanto, em vez de atacar diretamente a esfera dos pensamentos privados, seu foco estava no controle do comportamento público de alvos selecionados para servir de exemplo. Isso implicava recusar-lhes qualquer alternativa que não a de se conformar.

A cada vez que alguém pensasse em divergir, o regime recorria ao terror estatal como forma de forçar os alvos a, no mínimo, aparentar lealdade para com os próceres. Cada aparência de lealdade, por sua vez, exercia um notável efeito sobre os outros. Ao conformar-se, cada um espelhava a conformidade daqueles ao seu redor, e o resultado era uma imagem hiperbólica de lealdade. Assim, embora muitos pudessem entreter privadamente pensamentos rebeldes, cada um se sentia publicamente sozinho.

A perpetuação do medo

Nas palavras de Harrison: “Sob Stalin, o regime soviético foi violento. Para manter o regime no poder, milhões de pessoas foram presas, detidas, deslocadas, sujeitas à fome, escravizadas ou eliminadas. A violência era indiscriminada; a maioria desses milhões sofreram não por serem conhecidos inimigos do regime, mas por serem vistos como inimigos potenciais a serem neutralizados antes de fazer o mal, ou mesmo inimigos ‘inconscientes’”.

Para manter o regime no poder, milhões de pessoas foram presas, detidas, deslocadas, sujeitas à fome, escravizadas ou eliminadas | Foto: Shutterstock

No Brasil de nossos dias, Alexandre de Moraes age sob princípios perfeitamente stalinistas. Exige uma aparência de lealdade mediante a tática do medo, que não pode prescindir da espetacularização do poder de polícia. Escolhe suas vítimas para servirem de exemplo, donde a preferência pelas mais fracas e vulneráveis ao aparato repressor do Estado. Portanto, há método no aparente sadismo com que o mobiliza a força estatal sem eira nem beira contra indivíduos.

O método é a perpetuação do medo. E a medida da duração do regime é a medida da duração desse medo. Converto, pois, em pergunta a promessa do título da obra de Harrison: um dia viveremos sem medo?

Leia também “O que os nazistas teriam feito com as redes sociais?”

11 comentários
  1. Maria Luiza Werneck
    Maria Luiza Werneck

    Excelente! Como um louco psicopata toma o poder e consegue impor medo a toda uma nação
    Ops A todos não! Temos bravos e corajosos colunistas da Oeste que se expõem para defender a nossa liberdade Não posso Tb deixar de falar no povo que está indo às ruas protestar ! Vamos vencer! Não vamos desistir do Brasil!contestar

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Excelente análise. Parabéns Gordon.

  3. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    Flavio Gordon, e tudo o que estamos vivendo é fruto da inercia do Congresso, refém do sistema, especialmente do Senado que detém os poderes constitucionais para travar Moraes e sua trupe.

  4. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Sensacional seu artigo Flávio Gordon, exatamente isso, quando o medo é imposto de forma brutal e tiranica, o ser humano fica paralisado, não tem coragem de emitir suas opiniões. Teme pela sua vida ,pela família, pelo exercício de sua profissão e pela sua sobrevivência financeira. A ditadura comunista gerencia assim a vida de quem ousa discordar de suas ideias. Apenas deixo aqui uma dica para os leitores que te seguem, um filme cujo nome é “a vida dos outros”,excelente. Abraço e agradeço a oportunidade de lê-lo.

    1. Juliana saad de carvalho
      Juliana saad de carvalho

      Amei esse filme! Assistam.

    2. Juliana saad de carvalho
      Juliana saad de carvalho

      LIBERDADE PARA OS REFÉNS DO 08/01

      SECESSÃO

    3. Maria Luiza Werneck
      Maria Luiza Werneck

      Sim. Todos devem ver esse filme para conhecer o que nos espera! Já estamos quase lá! Até quando meu Deus??

    4. Maria Luiza Werneck
      Maria Luiza Werneck

      Excelente! Como um louco psicopata consegue imprimir um medo a toda uma nação! Ops! Todos não! Temos os corajosos e bravos colunistas da Revista Oeste que enfrentam esse poder ditatorial pra defender a nossa liberdade! Obrigada!

  5. Jorge Fernandes
    Jorge Fernandes

    Enquanto o povo seguir silente a mudança será apenas um sonho distante

  6. JOSE CARLOS GIOVANNINI
    JOSE CARLOS GIOVANNINI

    TEXTO IMPERDÍVEL.

  7. Solange Issa
    Solange Issa

    De um homem sano podemos esperar a auto crítica e a avaliação se suas atitudes são extremistas ou não, mas de um ser mentalmente perturbado essa auto análise se torna impossível.

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