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Cena do filme "Show de Truman" | Foto: Reprodução
Edição 268

O show de Emily

Uma garota do Texas está transmitindo há três anos sua vida para o resto do mundo

Dagomir Marquezi
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Hora 30.644. Emily está na sua cadeira de gamer usando fones de ouvido e conversando com alguém que não vemos. A estante ao fundo está lotada de quinquilharias. Em pleno maio, sua árvore de Natal permanece montada e com as luzinhas acesas.

Emily está estressada, respondendo a perguntas dos fãs. Diz que não malha e que os preços dos salões de beleza na cidade onde mora (Austin, no Texas) só perdem para os salões de Nova York (onde nasceu). Dá uma pausa para mostrar como se come uma banana pelas laterais. Sua performance é assistida ao vivo por 418 pessoas.

As 30.644 horas equivalem a 1.277 dias — quase três anos e meio. Durante todo esse tempo, Emily transmitiu (quase) todos os detalhes de sua vida por um aplicativo chamado Twitch. Sua casa tem câmeras ligadas 24 horas por dia em todos os cômodos, menos no banheiro. Ela assina como Emilycc para ocultar seu sobrenome e manter um mínimo de privacidade.

Aos 28 anos, virou estrela do Twitch. Nesta semana, uma grande reportagem de capa do jornal Washington Post revelou os detalhes do seu estranho mundo. 

Não é difícil entender seu sucesso. Emily não faz tipo. Ela mistura sua beleza delicada com uma atitude de moleque, berrando palavrões o tempo todo e falando tudo o que a pela sua cabeça. Vemos ao vivo suas mudanças — da irritação ao ótimo senso de humor, do cansaço ao estado de excitação. De vez em quando ela se desliga da câmera para cuidar de seu cão, Panda, e de sua gata, Bella. Não sai muito de casa.

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A diferença entre Truman e Emily

Segundo a matéria de Drew Harwell para o Washington Post, “no serviço de streaming ao vivo Twitch [que pertence à Amazon], uma das plataformas mais populares do mundo, Emily é uma figura lendária. Há três anos ela transmite sua vida incessantemente — cada aniversário e feriado, cada doença e noite sem dormir, quase tudo sozinha (…) Dedicou-se a uma vida solitária de estímulos quase constantes. Durante três anos, ela não tirou licença médica, não tirou férias, recusou todos os convites de casamento e não fez sexo”.

Do que Emily vive então? Cerca de 6 mil seguidores pagam US$ 6 por mês cada para suas transmissões. De 30% a 40% da renda fica para o Twitch. Muitos fãs fazem doações e mandam gorjetas. Sabendo que o Twitch tem mais de 100 milhões de visitantes por mês, podemos ter uma ideia do tamanho das possibilidades. Atualmente, Emilycc ganha cerca de US$ 5 mil por mês — aproximadamente R$ 28 mil.

É um bom dinheiro para quem “não faz nada”. Ao mesmo tempo, a quantidade de s — que já chegou a 22 mil — depende de sua performance. Se Emily se cansar da falta de privacidade, entrar em depressão e desligar as câmeras, o número de s cai. Portanto, sua vida precisa ser constantemente interessante, ou o dinheiro diminui.

Lembra o filme O Show de Truman, de 1998. No longa, o personagem Truman Burbank (interpretado por Jim Carrey) vive uma vida completamente falsa, criada num estúdio de TV e transmitida para o resto do mundo como um reality show.

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A diferença entre Truman e Emily é que Truman não sabia que estava sendo transmitido desde o berço. Emily optou por essa vida, que não tem nada de falsa — pelo contrário. 

Para alguns, o fenômeno se resume a “gente que não faz nada assistindo a gente que não faz nada”. Estamos vivendo um momento em que as pessoas estão cada vez mais solitárias e buscam uma intimidade à distância. Um marco dessa transformação parece ter sido as brutais medidas de isolamento na época da pandemia de covid-19.

Milhões de pessoas am suas noites assistindo a reality shows do tipo Big Brother. Casais transmitem sua vida sexual em sites como o OnlyFans. Renunciar à privacidade virou um bom negócio. Emilycc transformou essa renúncia num ato de heroísmo e é cultuada por isso.

Hora 30.643

É início de noite em Austin. Emily volta à sua cadeira de gamer vestindo uma roupa negra, de cabelos presos e bem maquiada. Liga o monitor ando brilho nos lábios. Inicia sua atividade favorita: participar de um game de monstros incorporada numa personagem feminina. Ela corre por salões sinistros perseguida pelo boneco Chucky armado com uma longa faca. Não dura muito, e seu avatar é decapitado num banho de sangue. “Eu estou tão morta”, diz Emily enquanto devora um taco apimentado. “Pelo menos foi uma morte rápida”, comenta enquanto vai buscar uma lata de refrigerante na geladeira. “Minha boca está pegando fogo!”

Porto seguro para solitários

Emily começou sua vida de streamer em 18 de novembro de 2016, quando ainda morava em Nova York. Ganhava mal como caixa e ava o tempo vago vendo o namorado jogar videogame. Foi esse namorado que sugeriu que ela entrasse no Twitch. Naquele dia, Emily transmitiu sua sessão no game World of Warcraft durante 3h23. Número de seguidores: zero. No dia seguinte, transmitiu seu jantar. Ganhou um seguidor. Com o divórcio dos seus pais e a dispersão dos seus amigos, o Twitch virou sua zona de conforto. Agora ela tinha amigos invisíveis.

Colagem de imagens das transmissões de Emily feita por fãs | Foto: Reprodução

Segundo a matéria do Washington Post, em 2021 Emily rompeu com o namorado, colocou suas coisas num carro Toyota e dirigiu durante 30 horas para começar uma nova vida em Austin. “Ela havia largado o emprego para se dedicar integralmente ao Twitch, transmitindo no dia em que terminou com o namorado, depois por seis horas no seu aniversário de 20 anos, e depois por 200 dias seguidos. Mas ainda sentia que não estava fazendo o suficiente.”

Matéria do Washington Post sobre a streamer Emilycc | Foto: Reprodução

Foi quando ela iniciou sua transmissão non-stop que já dura mais de três anos. Introvertida, Emily se forçou a ser comunicativa. Transformou a transmissão em sessões de terapia, contando suas angústias pessoais para a audiência. Na sua solidão, também se transformou num porto seguro para os solitários que a assistiam.

Ao completar seu terceiro ano de transmissão contínua, Emily virou uma celebridade entre os streamers. Foi convidada a participar de uma cerimônia em Los Angeles. Quando contou para sua mãe, avisou que ia de carro enfrentar 20 horas de estrada. A mãe perguntou o óbvio: “E por que não vai de avião">

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Hora 30.666

Emily acabou de acordar, está irritada e diz que não tem tempo para ficar doente. “Eu estou bem!”, diz ela enquanto a creme facial. Há 401 pessoas assistindo à transmissão quando ela arrota e diz que vai ear com a amiga Casey e o cão, Panda. Coloca a câmera na mochila de US$ 2,5 mil equipada com um modem, fecha o zíper e fica tudo escuro (ela sempre esconde a câmera na saída de casa para não identificar seu endereço).

Agora 452 pessoas ouvem Emily falando com o cachorro, mas continuam sem enxergar nada. Escuridão total. Ainda assim, o número aumenta para 466. Casey entra no carro, ouvimos trechos da conversa abafada. O escuro continua. O número aumenta para 471.

Finalmente Emilycc abre a mochila e vemos que ela está dirigindo um carro e comendo mirtilos com a amiga enquanto Panda fica no banco de trás. 

Corte da transmissão ao vivo de Emilycc | Foto: Reprodução

São 16h49 de um belo fim de tarde em Austin. A audiência sobe para 500. As duas amigas conversam como se não ligassem para o fato de mais de cinco centenas de pessoas metaforicamente viajarem com elas no carro.

Duas mulheres, um robô e um cachorro

Entre esses ageiros virtuais eando com elas pelas ruas de Austin estou eu. Emily conta a Casey que pediram uma entrevista para um site de notícias do Brasil — sim, a Oeste. Mas que ainda está na dúvida se responde ou não. Vai depender de seu estado de espírito. É o primeiro “não” sincero que eu ouço para um pedido de entrevista.

Em seguida, Emily revela o quanto sente falta de sua cadela Snowy, recentemente falecida. Alexa (ou seja lá qual for o sistema de atendimento robótico que ela usa) diz que também sente falta de Snowy. 

Corte da transmissão ao vivo de Emily | Foto: Reprodução

Elas chegam a um dos belos parques de Austin. Emily briga no trânsito porque outra mulher não respeitou a fila de estacionamento. “A bitch from Florida!”, resmunga. “Não se preocupe, Emily”, diz a robô. “Essa mulher vai ser a primeira a pisar no cocô do seu cachorro.”

Se você não entender que pode ear com duas mulheres, um robô falante e um cachorro a 8 mil quilômetros de distância, não está preparado para o mundo que vem por aí.


dagomirmarquezi.com
@dagomirmarquezi

Leia também “Arya: a inteligência artificial sem censura”

3 comentários
  1. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Se existe público para Big Brother, certamente tb há para Emily, para meu espanto. Realmente creio não estar preparada para o mundo q vem por aí , como vc diz ao final. O mundo nos surpreende mais e mais a cada dia, infelizmente nem sempre positivamente.
    Interessante artigo, Dagomir. Importante saber das excentricidades!

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Esquisito. Porém, tem público pra tudo!

  3. Jaime Moreira Filho
    Jaime Moreira Filho

    ^Não sabia que existia tanta babaquice. O que ela ganha com isso???Dinheiro para quê???È tão idiota que não saberá usar!!!!!!!!!!!!

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