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Ilustração: Anggalih Prasetya/Shutterstock
Edição 269

O computador vivo

O CL1 é o primeiro computador que usa células humanas

Dagomir Marquezi
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“Aprenda comigo — se não pelos meus
conselhos, ao menos pelo meu exemplo — quão
perigosa é a aquisição do conhecimento, e como é
mais feliz aquele que enxerga limites no mundo
à sua volta do que aquele que aspira a se tornar
maior do que sua natureza permite.”
(Mary Shelley, Frankenstein, 1818)

A ideia de um computador que use células cerebrais humanas não parece deste mundo. Humanos são humanos — sangue, ossos, nervos, tecidos. Computadores são computadores — circuitos, placas, chips. Podem conviver, mas não se misturam. Ou não se misturavam. Até agora. 

A startup australiana Cortical Labs derrubou o muro que separava os humanos de suas criações e desenvolveu o CL1, o primeiro “computador biológico”. Tem o tamanho de uma caixa de sapatos. Seu mostrador é extremamente simples. 

A revolução está no hardware, um disquinho de cinco centímetros com 1.024 eletrodos capazes de transmitir sinais elétricos. No topo de cada disquinho, chamado DishBrain, estão misturadas células de humanos e de ratos. As células e os chips mesclam-se numa rede neural única, meio humana, meio eletrônica. Chips e neurônios viram uma coisa só.

Um corpo artificial

Não pense que, como na história de Frankenstein, o pessoal da Cortical Labs foi até o cemitério mais próximo roubar cérebros dos mortos. As células humanas foram doadas por voluntários. 

“Nós pegamos células de sangue ou de pele e podemos transformá-las em células-tronco”, explicou o fundador e CEO da Cortical Labs, Hon Weng Chong, para a agência Reuters. “E transformamos as células-tronco em células cerebrais ou em neurônios que usamos para computadores e inteligência.”

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O computador CL1 tem um aspecto que lembra o monstro criado por Victor Frankenstein. Por conter células vivas, seu hardware precisa ter um sistema vital para que as células não morram. Bombinhas fazem o papel do coração, pequenos tubos armazenam os dejetos, filtros de água fazem o papel dos rins. Um misturador de gás distribui o oxigênio, o nitrogênio e o dióxido de carbono para as células.

A esta altura podemos pensar que o biocomputador é mais do que uma máquina. Ficou parecido com um ser vivo. Conforme esses computadores evoluírem, vão precisar de “corpos” mais evoluídos. Em que direção estamos indo?

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E para que serve o CL1?

“No curto prazo podemos usá-lo para a medicina personalizada”, declarou Hon Weng Chong à Reuters. “E também para a descoberta e o desenvolvimento de novas drogas. Com esse tipo de tecnologia nós potencialmente poderemos cultivar neurônios retirados de pacientes com demência ou epilepsia, e testar compostos e drogas que serão personalizados e produzidos especificamente para esses pacientes.”

Em outras palavras, hoje temos computadores que analisam problemas neurológicos. Um computador como o CL1 é um cérebro e pode dar respostas muito mais exatas se forem implantadas nele células cerebrais doentes. Trata-se de um conceito novo de medicina, uma integração entre doença e diagnóstico como jamais ocorreu.

Segundo a Cortical Labs, “o CL1 é o primeiro computador biológico que permite que laboratórios médicos e de pesquisa testem como neurônios reais processam informações, oferecendo uma alternativa eticamente superior aos testes em animais, ao mesmo tempo que fornece dados e insights humanos mais relevantes”.

Inteligência biológica sintética

Esse é um território novo, que obviamente vai levantar questões éticas igualmente inéditas. Afinal, o CL1 é considerado uma “inteligência biológica sintética”. Essa inteligência vai conhecer deveres e direitos? Será considerada máquina ou ser vivo?

A Australian Broadcasting Corporation entrevistou a professora Silvia Velasco, especialista em medicina com base em células-tronco e que não participou do desenvolvimento do CL1. Sua resposta sobre as questões éticas do projeto: “Neste momento, considero essa uma preocupação infundada. Acho que seria uma oportunidade perdida não poder usar um sistema que promete curar doenças cerebrais devastadoras. Mas, ao mesmo tempo, é importante avaliarmos e anteciparmos potenciais preocupações que o uso desses modelos possa levantar.” 

4 bilhões de anos

Fora do terreno da medicina, a biocomputação oferece possibilidades promissoras. A pesquisa conseguiu seu primeiro resultado em 2021, quando 800 mil neurônios humanos ligados a um chip aprenderam intuitivamente a jogar o Pong, um game primitivo lançado pela Atari em 1972.

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Parece muito simples, mas foi um marco na história da inteligência artificial. Um “cérebro” misto de chips e células tomou uma iniciativa e aprendeu sozinho a jogar o game. Esse momento abriu uma avenida de possibilidades para o uso de biocomputadores na área de inteligência artificial.

Segundo a Cortical Labs, “a IA tradicional exige vastos conjuntos de dados, mas os neurônios reais aprendem intuitivamente com treinamento mínimo e uma fração da energia”. 

A inteligência artificial como a conhecemos hoje é uma simulação da inteligência humana. O CL1 é outra coisa, segundo seus fabricantes. Biocomputadores são “autoprogramados, infinitamente flexíveis e o resultado de 4 bilhões de anos de evolução”.

Camponeses assustados

Quatro bilhões de anos depois, o que provoca em você a ideia de um computador com neurônios humanos? Repulsa? Curiosidade? Medo? Entusiasmo?

Vivemos tempos extraordinários a uma velocidade à qual não estamos acostumados. Seremos o doutor Victor Frankenstein, que usou (no nascimento do século 19) o assustador poder da eletricidade para dar vida a uma colagem de corpos? Ou seremos os camponeses assustados que foram com tochas ao castelo para interromper seus experimentos e tentar brecar a marcha da evolução?

Tanta coisa já foi feita, exclamava a alma de Frankenstein — mas eu vou mais longe, muito mais! Vou seguir os rastros deixados e abrir um novo caminho, explorar poderes desconhecidos e revelar ao mundo os mistérios mais profundos da criação.
(Mary Shelley, Frankenstein, 1818)


dagomirmarquezi.com
@dagomirmarquezi

Leia também “O show de Emily”

4 comentários
  1. AUGUSTO CESAR DE ALMEIDA CHAGAS
    AUGUSTO CESAR DE ALMEIDA CHAGAS

    No principio, no Genesis da Bíblia, as primeiras pessoas quiseram construir a Torre de Babel.
    Não queriam conhecer Deus, queriam ser Deus! Hoje continua o mesmo desejo! Dizem que a intenção é boa, mas Deus conhece a intenção do coração e sabe que o mal é o combustível que move as intenções. Há um juízo da parte de Deus: Repentina destruição!😪

  2. Wagner Darlan Antas de Almeida
    Wagner Darlan Antas de Almeida

    Excelente matéria do repórter Dagomir.

  3. Wagner Darlan Antas de Almeida
    Wagner Darlan Antas de Almeida

    Excelente matéria do repórter Dagomir.

  4. Heleraldo Luiz Costa
    Heleraldo Luiz Costa

    4 bilhoes de anos de evolução? Com certeza não foi na terra, pois a vida aqui surgiu bem depois

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