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Foto: Shutterstock
Edição 269

O fenômeno dos ‘bebês’ reborn

Tendência na Europa e nos EUA há décadas, bonecas hiper-realistas provocam polêmica no Brasil

Flávio Gordon
-

“O grande desvio do pensamento moderno tem origem
nessa inversão interior, pela qual a vontade se arroga um
direito de conquista onde somente à inteligência cabe o primado.
Todos nós, mais ou menos europeus, estamos impregnados de
idealismo filosófico até a medula dos ossos, estamos convencidos
de que nossa dignidade mais alta reside nesse subjetivismo
obstinado que tenta reduzir todas as coisas do céu e da terra
a meia dúzia de opiniões.”
(Gustavo Corção, A Descoberta do Outro)

Chegou recentemente ao Brasil uma tendência que, na Europa e nos Estados Unidos, já tem uns bons 30 anos, ao longo dos quais não deixou de suscitar debates e polêmicas: as bonecas reborn. As reborn são bonecas de bebê hiper-realistas, em tamanho real, esculpidas em silicone ou vinil e geralmente pintadas à mão. Costumam ser extremamente caras, variando de centenas a milhares de dólares. Seu alto custo e fragilidade fazem com que sejam itens de colecionador mais consumidos por adultos, especialmente do sexo feminino, que compõem a maioria das comunidades on-line dedicadas ao assunto. Para suprir a demanda, surgiu uma indústria poderosa que vende centenas de milhares de bonecas por ano.

Como todo fenômeno de mercado, esse também se caracteriza por conter um aspecto benigno e um aspecto maligno. Alguns compradores têm uma relação saudável com o item, adquirindo-o como objeto meramente colecionável, assim como tantos outros de igual função — de selos a sapatos, de latas de cerveja a uniformes de futebol, de quadros a carros antigos. Há, além disso, um uso terapêutico cada vez mais frequente das bonecas, que têm sido empregadas, por exemplo, no tratamento de doenças como autismo, demência e Alzheimer. 

Como todo fenômeno de mercado, esse também se caracteriza por conter um aspecto benigno e um aspecto maligno | Foto: Shutterstock

De fato, as motivações das pessoas para entrar na comunidade reborn variam bastante: algumas simplesmente acham as bonecas divertidas, enquanto outras se sentem realizadas ao praticar a arte desafiadora de “criá-las”. Um grande número de adeptos faz do hobby um mecanismo para lidar com o sofrimento emocional. Dentre os colecionadores, uma grande parcela é composta de pessoas que estão lidando com problemas de infertilidade, aborto espontâneo ou a perda de um filho recém-nascido, condição em que as bonecas podem oferecer conforto durante o período inicial de luto.

Até aí tudo bem. Mas há também o lado sombrio do fenômeno, que se revela como mais um sintoma do desarranjo cultural contemporâneo. Há consumidores que aram a tratar as bonecas como se fossem reais e, mais ainda, exigir o reconhecimento de sua condição parental. Algumas mulheres montam berçários elaborados, gastam o equivalente a milhares de reais em roupas e órios para seus “filhos”. Outras têm coleções que chegam às centenas, em parte inspiradas por perfis populares nas redes sociais, que exibem suas reborns para milhões de seguidores.

Os membros da comunidade on-line encontram-se em fóruns na internet, no Instagram e no Facebook, por meio de canais no YouTube e, claro, no comércio eletrônico de nicho, como eBay e Mercado Livre. A comunidade inclui vídeos de encenação de parto, rotinas matinais, eios, compras de itens reais para bebê (como fraldas, leite em pó e pomada para assadura), tours por berçários, idas ao pediatra e qualquer outro aspecto do cuidado infantil que se possa imaginar.

Indústria grande e lucrativa

Na América do Norte, na Europa e no Japão, a produção de bonecas para mulheres adultas é uma indústria grande e lucrativa. Comercialmente ligada à coleção de bonecas de porcelana “reais” e antigas, a nova mercadoria difere de modo bastante radical — em forma, função, estética e muitos outros aspectos — das bonecas destinadas a crianças. Em termos de marketing, as reborn são direcionadas a mulheres que se encontram na fase chamada de “ninho vazio”: já criaram seus filhos (ou talvez nunca os tenham tido) e podem esperar viver muito mais do que no ado. Usualmente pertencentes às classes alta e média alta, são mulheres com condição financeira de pagar de US$ 200 a US$ 20 mil por uma boneca, o que faz da compra também um bom investimento. O argumento de venda é reforçado por certificados de autenticidade, números de edições limitadas, s de artistas e o apelo à coleção. As bonecas tendem a se valorizar com o tempo, e um sujeito que tenha adquirido um exemplar por, digamos, US$ 500, talvez consiga vendê-lo por US$ 5 mil a algum colecionador futuro.

O design das bonecas é, evidentemente, fruto de uma pesquisa de mercado cuidadosa. Um dos principais atrativos de venda é o realismo elaborado, algo que raramente se aplica ao design de brinquedos destinados a crianças. Grande atenção é dedicada, por exemplo, a detalhes como a curvatura dos cílios, o formato das narinas e das unhas, a textura da pele, a maciez dos fios capilares, o cheiro etc. Todas as bonecas têm nomes e identidades pessoais que são desenvolvidas nos textos publicitários e nas embalagens, bem como exibidas nos sites de compra on-line.

Para quem é de fora da subcultura reborn, obviamente, as bonecas parecem inertes e até um pouco sinistras, por lembrarem (e eventualmente serem confundidas com) bebês mortos — criaturas dotadas de olhos, mas destituídas de olhar. No entanto, os consumidores de tal excêntrica mercadoria costumam destacar justamente a sua naturalidade e o fato de parecerem vivas. A frase “elas são muito mais que um brinquedo” é constantemente repetida por “mães” e “pais” de bonecas reborn

Aspecto patológico chegou com tudo

No Brasil, o aspecto culturalmente patológico do fenômeno chegou com tudo. Além de levar até mesmo à construção de maternidades com incubadoras e salas de parto, bem como à organização de chás de bebê, dias das mães e de outros eventos relativos ao nascimento e à maternidade, a ilusão de parentalidade é tamanha que já se registrou, inclusive, uma disputa judicial pela guarda de uma dessas “bebês” de silicone. Reconhecendo oficialmente o fenômeno, a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro instituiu o “Dia da Cegonha Reborn”, em homenagem às artesãs que fabricam as bonecas. Como costuma acontecer, as psicoses coletivas que se desenvolvem gradualmente noutras partes do mundo já chegam prontas e consagradas ao Brasil.

Seria fácil, por óbvio, descartar a impressão realista dos “pais” de bebês reborn como meramente metafórica. “É claro que eles não acham realmente que essas bonecas estão vivas” — diríamos. Mas tão logo comecemos a analisar o comportamento dessas pessoas percebemos que, se não o acham propriamente, ao menos se comportam como se achassem. É claro que o simples engenho na fabricação, que torna as bonecas parecidas com bebês de verdade, não basta para explicar essa fantasia. São os próprios “pais” que projetam vida nas bonecas. E o fazem graças a um extremo subjetivismo, traço cultural da época que se manifesta numa série de outros fenômenos.

Para esses “pais”, se as bonecas de luxo parecem ter vida, é porque a vida mesma se lhes afigura como uma boneca de luxo: estável, imortal, aperfeiçoada, customizada. “É como se eu tivesse um bebê de verdade” — eles costumam dizer, não raro acrescentando: “sem o inconveniente do choro, das fraldas sujas e da privação de sono”. Essas pessoas se identificam como pais, como ocorre com uma pessoa transgênero ou transespecífica (que se identifica como animal).

Mas, por óbvio, os “pais” reborn não são pais de verdade. A parentalidade é uma relação interpessoal, se dá entre duas pessoas, dois sujeitos — a mãe (ou o pai) e o filho. Trata-se de uma relação que o filósofo Martin Buber chamou classicamente de Eu-Tu. Já a relação entre os “pais” reborn e o seu “bebê” não é de parentalidade, apesar de querer emulá-la, e sim uma relação entre um sujeito e um objeto, entre o consumidor e a sua mercadoria ou, nos termos de Buber, entre um Eu e um Isso.

Um objeto não nos responde, não nos interpela, não nos demanda. Um “bebê” de plástico não chora. Ao contrário de um bebê real, o reborn é dócil e receptivo às nossas vontades, sem jamais confrontar-nos com as suas próprias. Enquanto a parentalidade natural implica altruísmo e abdicação do ego, a parentalidade sintética traduz narcisismo. Em vez da difícil arte de amar o próximo, o que se tem aí é a cômoda prática de amar a si próprio.

Alguns consumidores aram a tratar as bonecas como se fossem reais e, mais ainda, exigir o reconhecimento de sua condição parental | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Leia também “Sob um Estado de medo”

16 comentários
  1. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    O ser humano perdeu a noção da realidade e busca subterfúgios para abafar suas mágoas e dores independente de posição sócio econômica.
    Tivemos o período o Pokemon onde pessoas morreram atropeladas “caçando” os tais bichinhos virtuais.
    Depois o Neymar pagou R$ 2,7 milhões pela figurinha de um macaquinho.
    Se já não fosse suficiente, um “artista” teve a ideia de colar uma banana em quadro com fita adesiva, e pior, encontrou quem pagasse R$ 35,8 milhões pela “obra”.
    Em algum momento erramos nas escolhas dos caminhos que a humanidade está seguindo.

  2. nelson jorge leite
    nelson jorge leite

    Alopraram…………. Mamma mia !! não é possível ……..estão tomando água de valeta ou o bagulho deve estar estragado. Inacreditável!!

  3. MTM_CZA
    MTM_CZA

    Deixem as pessoas serem felizes!

  4. Wagner Darlan Antas de Almeida
    Wagner Darlan Antas de Almeida

    O bom nisso só a matéria repórter da revista Oeste. Atualizada e confiável.

  5. Isa Maria Borba
    Isa Maria Borba

    Coitados, coitadas e coitades. Precisam , urgentemente, de tratamento psicológico e/ou buscar o que fazer.

  6. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Se não for mais caro que um tratamento psicológico, parece razoável o conformo que traz à essas mães.

  7. JORGE LUIS
    JORGE LUIS

    Teresa Guzzo foi no ponto, não são bebês e sim bonecas reborn.

  8. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Tem doido pra todo tipo e gosto não só aqui mas em todo mundo

  9. Leonardo de Almeida Queiroz
    Leonardo de Almeida Queiroz

    Essa moda bebê reborn é mais uma metástase do câncer da ideologia woke sobre identidade de gênero e que tais, onde se exige dos outros adesão obrigatória a suas maluquices.

  10. Rosely M G Goeckler
    Rosely M G Goeckler

    Gente! Que maluquice!

  11. Luiz Alberto Kuhn Adames
    Luiz Alberto Kuhn Adames

    S E M C O M E N T Á R I O S!

  12. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Acho que essa cultura de substituir crianças mortas ou a incapacidade de ter filhos por bonecas ou bonecos uma doença mental.Eh você regredir a primeira infância, em uma idade na qual crianças de até cinco anos de idade se apegam emocionalmente a um objeto, muitas vezes um brinquedo querido, substituindo simbolicamente as figuras parentais .Esse apego é saudável e consolador no desenvolvimento infantil (chama-se na técnica psicológica objeto de transição).Agora o que significa um objeto sem vida para um adulto? As perdas fazem parte da vida e.precisamos acionar nossos recursos internos para á-las.Isso apenas se faz possível através de um trabalho terapêutico cuidadoso,as vezes dependendo do caso com ajuda medicamentosaVejo como um delírio onde a realidade é tratada como uma fantasia, Bem aqui no artigo fala-se de bebês, não é possível substituir por bonecas.

  13. Mary Rodrigues De Oliveira Rios
    Mary Rodrigues De Oliveira Rios

    Realmente as pessoas enlouqueceram

  14. Marcelo Martins
    Marcelo Martins

    Quando eu vejo essa onda de bebês reborn, eu vejo que a Psiquiatria será a profissão do futuro! A cada dia que a, mais e mais pessoas estão ficando completamente loucas! É bebe reborn, é gente achando que é bicho, olha, é cada um mais doido que o outro!

    1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
      Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

      Realmente difícil.

    2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
      Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

      Realmente difícil.

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