A famosa frase “em se plantando, tudo dá” é tão bonita quanto mentirosa — como lembra Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura e um dos nomes que ajudaram a escrever a história do agro tropical. Foi com ciência, tecnologia e muita persistência que o Brasil virou protagonista absoluto na agricultura dos trópicos.
Apesar da flora exuberante, falta fertilidade à maior parte do solo nacional, uma fronteira atravessada com ciência e tecnologia. Foi nesse ponto que os agricultores brasileiros se tornaram imbatíveis e provaram, na prática: com conhecimento, sim, tudo dá.
Eles dominaram técnicas, reinventaram métodos e transformaram o Brasil em uma espécie de caixa de ferramentas do mundo — tanto na produção global de alimentos quanto no desenvolvimento de soluções adaptadas à terra tropical. Com engenhosidade (e um tanto de arte), novas fronteiras são abertas diariamente, frutificando em riqueza, eficiência e avanço. Esse desempenho não ou despercebido. Investimentos em pesquisa e desenvolvimento vindos de outros países aram a brotar em solo brasileiro — apostas que vão muito além do lucro imediato.
Brasil: o solo fértil para inovações do agro
Nutrir-se da expertise local é aprender com quem sabe plantar como ninguém nos trópicos — para exportar know-how. Afinal, é essa faixa do globo que tem o maior potencial de alimentar o futuro.
Um exemplo recente vem de uma empresa que poucos esperariam ver nesse campo: a Bosch. Mais conhecida pelas furadeiras e parafusadeiras das prateleiras de ferragens, a multinacional decidiu participar de outra construção no Brasil. A empresa anunciou que o país sediará seu principal polo de pesquisa e desenvolvimento para a agricultura. Segundo Gastón Diaz Perez, CEO das operações na região, a Bosch tem a “profunda convicção de que o futuro da produção de alimentos” a por aqui.
“Quando você verifica clima, água, estabilidade geopolítica, quantidade de safras por ano, a única região que responde positivamente a tudo isso é a América Latina”, afirmou o executivo. “E o Brasil é o protagonista desse cenário.”
A leitura da Bosch não é isolada. A CNH Industrial, dona da Case, também fincou o pé no interior paulista, em Sorocaba. Ali, desenvolve tratores, colheitadeiras e pulverizadores pensados sob medida para os desafios do clima e do solo nacionais.

Entre as inovações, um trator autônomo chama atenção: uma máquina que opera sozinha e pode ser controlada remotamente por um tablet. A ficção científica saltou do cinema para o chão de terra — para plantar, colher e pulverizar sem nenhum homem ao volante. Entretanto, o ecossistema local de inovação não é feito apenas de gigantes.
Um exemplo modesto em tamanho e surpreendente em inovação é a Solitec, criada por um cubano radicado no Brasil. Seu invento? Um robô com laser que extermina pragas como se fosse um veículo em uma invasão alienígena. Parece um “transformer” das lavouras, com luzes que disparam no solo para erradicar tudo que possa prejudicar a produção. A robótica é somente uma frente de inovação entre muitas — e nem sequer é a primeira.
Muito além (e antes) das máquinas
A proeminência da agricultura nacional é fruto de décadas de cérebros, braços e vontade política. As sementes desse processo não foram obra do acaso. Na década de 1970, o Brasil decidiu mudar sua sina de importador de alimentos. Para isso, buscou produção onde o mundo só via vazio: no Cerrado. Muitos resumiam esse bioma com um deboche: “Nem dado, nem herdado”.
Três pilares sustentaram a virada: terras íveis, gente disposta a desbravá-las e a criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A estatal recheia páginas de economia e ciência — e a longe do noticiário policial, diferentemente de outros pares. O segredo do sucesso: em vez de produzir comida, preferiu criar conhecimento.

Nada de “arrozbras”, “feijãobras” ou “carnebras”. A Embrapa pesquisa e desenvolve soluções em parceria com quem pisa na terra. Transita entre o saber científico e o empírico — de quem estuda para quem sente a terra com as próprias mãos. O resultado foi uma revolução silenciosa que começou com sementes adaptadas e não parou mais.
Da água ao vinho: no Nordeste, a terra seca virou vitrine
O setor privado soube colher o que a Embrapa semeou. Um dos grandes cases de sucesso é o Vale do São Francisco. Região de solo pobre, poucas chuvas e muito sol. Condições perfeitas para dar errado — exceto pelo maior ativo do país: o povo disposto a arregaçar as mangas e fazer acontecer. A Bunge instalou em Petrolina seu maior centro de pesquisa e desenvolvimento do Hemisfério Sul. Nos campos, a multinacional aproveita as condições para desenvolver soluções para o cultivo de soja e milho — os carros-chefes do agro brasileiro. Mas, por lá, os agricultores preferem as frutas.
Graças à irrigação, à adubação e ao controle de pragas, o que era escassez virou abundância. Embora a maior safra seja a da manga, a uva tem colheita mais simbólica. O solo pobre virou vantagem: uma tela em branco onde tudo é calculado. Com plantas geneticamente adaptadas, adubo sob medida e água do Rio São Francisco, as parreiras produzem com precisão cirúrgica.
Os resultados impressionaram até a Global Wine. No sertão seco, o titã europeu encontrou uma versão tropical do Mediterrâneo. Caminho também seguido por gigantes do país como a Miolo, que ali desenvolveu um terroir tão improvável quanto rentável.
Desde os primórdios
A produção agrícola do Brasil é tão antiga quanto a própria nação. Lá pelos anos 1500, já se cultivava cana para destilar cachaça e produzir açúcar. Os engenhos deram origem às primeiras vilas e cidades, a partir da adaptação de uma planta e de um modelo fabril importado às condições locais.
Sem carvão, usavam-se tração animal para a moagem e lenha para aquecer os tachos. As técnicas davam origem ao açúcar, que atravessava o Atlântico sem estragar e adoçava o paladar europeu do outro lado do mundo, além de servir para conservar comida. Era dinheiro doce.
Esse espírito atravessou os séculos. Hoje, ciência e tecnologia fazem do Brasil um farol da agroindústria mundial. Os engenhos deram lugar aos conglomerados. Um deles é a Raízen, fruto da parceria entre a brasileira Cosan e a petroleira estrangeira Shell. Dessa união nasceu o maior produtor mundial de bioenergia.
O Brasil também deu ao mundo o motor flex. E, com ele, as usinas flex: elas funcionam com cana ou com grãos, conforme a safra e o mercado. Hoje, com mais de uma safra de grãos por ano no mesmo lugar, sobra matéria-prima para fazer ração, sem deixar de produzir biocombustível. Algumas usinas do Centro-Oeste alternam entre cana e milho, a depender da oferta do momento. Menos ociosidade, mais eficiência.

Contudo, o setor sucroalcooleiro é apenas uma das muitas facetas do agro nacional. A lista das áreas proeminentes é versátil. A começar por técnicas que fazem do Brasil um dos modelos mais sustentáveis e rastreáveis para a produção de algodão do mundo. Uma camiseta, uma calça ou qualquer tecido vindo da roça brasileira pode contar com um sistema de rastreabilidade em que o consumidor final conhece todos os detalhes da cadeia produtiva: desde a semeadura, com informação sobre como, quem e onde.
Para a retomada do plantio do algodão, houve a superação de uma praga que dizimara o plantel décadas atrás — feito propiciado por muitos cientistas e anos de pesquisa para o país voltar a ser um dos grandes exportadores do mundo, como é hoje. Além disso, outro segredo exclusivo tornou o negócio mais seguro e viável: a alternância do cultivo com a soja, o maior combustível do enorme motor que move o agro nacional.
A soja nossa de cada dia
Enquanto a cana tornou viáveis as viagens dos europeus para atravessar o Atlântico, a soja conseguiu nutrir o interior com desenvolvimento — mas a base dessa marcha não seria possível apenas jogando sementes na terra. Em primeiro lugar, o solo dessas áreas não era um show de fertilidade. O nome “Mato Grosso”, por exemplo, vem justamente do excesso de uma vegetação alta e grossa, com a qual ninguém sabia o que fazer.
Não bastasse esse fato, a planta que dá origem ao grão não é nativa do Brasil. O comum, aliás, era fazer o cultivo em áreas temperadas, como as dos Estados Unidos e da Europa. O tripé de sempre entrou em ação: terras, gente de fibra e Embrapa. Com ele, o Estado se tornou a grande referência para a agricultura em todo o planeta — dono de safras capazes de superar países inteiros.
Com tanta pujança, os agricultores brasileiros foram além e não ficaram somente na dependência das grandes comercializadoras de grãos e fornecedores de sementes, empresas que dominaram o mercado global por anos. Alguns deles aram a criar negócios para desenvolver o que plantar e vender a colheita. Entre os mais prósperos, destaca-se o nome Amaggi.

A saga da companhia mostra um bom panorama do trabalho de homens e mulheres para construir a maior produção de soja do planeta. Não foi um grande herdeiro que deu as bases da empresa — ou tampouco para as outras lavouras do Centro-Oeste. Quem ia para lá buscava melhorar de vida. Muitas vezes, eram famílias de lavradores que possuíam pouca ou nenhuma terra em seu estado natal, dispostas a trocar noites mais tranquilas no lugar onde nasceram e se mudar para uma região cheia de incertezas, mas com chance de prosperidade.
O nome Amaggi homenageia André Maggi, que saiu de um sítio de subsistência no Rio Grande do Sul para construir um império. Antes de virar sementeiro, foi serralheiro. Com cerca de 30 anos, o gaúcho fundou uma empresa de sementes no Paraná — e logo levou tudo, inclusive a família, para Mato Grosso.
Semente por semente, construiu uma rede global que hoje alcança até a Ásia. Em 2023, vendeu 20 milhões de toneladas de grãos. É um volume equivalente à colheita de soja da China, que tem a quarta maior safra do planeta.
Na outra ponta da cadeia produtiva, a soja da Amaggi e do resto do território nacional foi pilar para outras indústrias. O mix vai de combustíveis renováveis a matérias-primas para cosméticos, ando por bases para o confinamento de animais que sustentam, no Brasil, as maiores indústrias do mercado mundial de carnes. Algo que os primeiros portugueses que avistaram as costas além-mar nem sequer sonharam — e, portanto, jamais prometeram nos diários de bordo.
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Adoro suas reportagens, um dos melhores momentos da Oeste!
Meu pai sempre dizia, tal qual o Ministro Roberto Rodrigues, que Pero Vaz de Caminha fez muito mal ao Brasil quando escreveu ao Rei que “Nessa terra se plantando tudo dá”. O trabalho dos pesquisadores e dos empreendedores a partir da década de 1970 transformou o Brasil.