Ilustração: Revista Oeste/Feito por IA
Edição 271

Caindo na real

Se a mídia tradicional estivesse atenta às obrigações do jornalismo, o “Inquérito do Fim do Mundo” teria morrido logo, por inconstitucionalidade

Está proibida a entrada nos Estados Unidos de estrangeiros que tenham aplicado a americanos multas, bloqueios, censura e sanções que desrespeitem o direito sagrado americano de liberdade de expressão. O anúncio fez cessar manifestações de desdém dos que queriam fazer crer que eram apenas fanfarronices de brasileiros que estão refugiados por lá. Os que estão proibidos de entrar no país, com visto cancelado, só vão descobrir quando desembarcarem, depois de oito ou dez horas de voo, em aeroporto americano. Serão embarcados de volta. Entre os que foram surpreendidos pela realidade figuram também órgãos da mídia que faziam suas publicações como se tudo estivesse bem com o ordenamento jurídico, com o devido processo legal e com a Constituição, e como se não existisse censura. Mas pegaram também o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, por noticiar um fato que desagrada o Judiciário — sobre o que agrada o Judiciário: o contracheque.

O Estadão e a Folha amanheceram com editoriais condenando a censura que o Judiciário aplicou à reportagem da Zero Hora sobre o escandaloso contracheque de uma desembargadora, de R$ 662 mil num único mês. O jornal e a jornalista autora foram condenados pelo próprio tribunal a que pertence a desembargadora a uma indenização — coincidentemente — de outros R$ 600 mil. O teto no serviço público é de pouco mais de R$ 46 mil, e a Constituição diz que a istração pública exige legalidade, moralidade, publicidade. A remuneração é, portanto, pública. Ficou parecendo uma vindita, um aviso para não se meterem com o Judiciário, como um reflexo de reações do Supremo. O Estadão intitulou o editorial de Uma Casta Acima da Lei e concluiu ponderando que um poder sem limites se torna tirania. Já a Folha de S.Paulo deu ao texto o título Censura do Judiciário e concluiu que ela serve para intimidar os veículos de comunicação e seus profissionais. Reações bem tardias contra algo que se repete nos últimos seis anos.

Quando o Judiciário bloqueou contas nas redes e nos bancos, e até cassou aportes de jornalistas que atuam no mundo digital, não lembro de ter havido editoriais condenando a censura, a intimidação e a justiça em causa própria como represália por críticas. Como disse o ministro Moraes anos atrás: quem não quiser ser satirizado, criticado, que não ingresse na vida pública. Assim como o editorial do Estadão afirmou ser constrangedor ter de repetir o óbvio, que não há democracia sem imprensa livre, sinto-me acaciano em ter de repetir o que está na Constituição: “É vedada toda e qualquer censura, de natureza política, ideológica e artística”.

Ilustração: Jorm Sangsorn/Shutterstock

No entanto, estamos em tempo de avanço de uma ideologia que não tem constrangimento em citar a China como modelo de “regulação” da voz digital do povo. O governo já tem um texto de projeto para inserir censura prévia no Marco Civil da Internet, sancionado por Dilma em 2015, depois de muito discutido no Congresso. O primeiro o da censura foi dado quando a revista Crusoé foi impedida de circular com capa sobre “O Amigo do Amigo de Meu Pai”, com foto do ministro Dias Toffoli. O Judiciário é composto de pessoas públicas que não am crítica. Por isso foi instituído, na prática, o crime de opinião. A consequência é ter uma democracia de fachada, degradada.

O ministro aposentado do Supremo Marco Aurélio Mello chamou isso de “decadência”. Que debilita todos os valores democráticos e fortalece o arbítrio. A democracia só se sustenta com liberdade de expressão e respeito à Constituição. A advocacia do governo agora aciona o Supremo, com pedido de liminar “para obrigar as plataformas a interromperem a disseminação de notícias falsas e impedirem a violência digital”, segundo a agência oficial. Não apenas a lei que se dane, mas o argumento é incrível: o Marco Civil da Internet não pode ser usado como desculpa pela omissão de censura por parte das plataformas. Já que pegou idosos nos descontos da Previdência, agora, como compensação identificada por Freud, o governo alega que a censura nas redes é para proteger as criancinhas. Sendo a censura doce fato político, os censores de hoje podem ser os censurados de amanhã, como constataram tardiamente a Folha e o Estadão. Pois o mesmo pau que bate em Chico também vai bater em Francisco.

Os americanos sabem que a liberdade de expressão é um dos direitos humanos. Por isso o bloqueio da fronteira não será a única sanção aos que não respeitam direitos básicos de uma democracia. O anúncio de que virá a Lei Magnitsky já foi feito pelo secretário de Estado e vai pegar também os que agridem outros direitos humanos. Em Brasília, a represália veio rápido. Como a Rainha de Copas de Alice, cortem a cabeça de Eduardo Bolsonaro, como se houvesse necessidade de o deputado brasileiro falar para conhecerem, em Washington, as circunstâncias das prisões de manifestantes, com a morte de Clezão. Bastaria a morte de Clezão, como bastou a morte de Sergei Magnitsky na Rússia. Se a mídia tradicional estivesse atenta às obrigações do jornalismo, o “Inquérito do Fim do Mundo” teria morrido logo, por inconstitucionalidade. A realidade sempre esteve entre os leitores e a audiência, mas não entre os que se omitiram e deveriam servir a seu público.

Ilustração: Shutterstock

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8 comentários
  1. Marcio Cruz
    Marcio Cruz

    Lula critica o “genocidio” de Israel “matando civis e especialmente crianças em Gaza”….
    Lula critica as falas do Trump, com intenção de ocupar territórios da Groenlândia e Canadá… “.

    Mas vc nunca ouvirá o Lula criticar a Rússia por invadir territórios da Crimeia e Ucrânia, matando civis (especialmente crianças)

  2. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    O judiciário mais caro e ineficiente do mundo atropelou todos os preceitos jurídicos e jogou o país em uma vala atingindo a todos sem distinção. Basta discordar das decisões dos supremos encastelados no poder.
    Até Marcelo Bretas, juiz de carreira concursado teve sua aposentadoria compulsória decretada simplesmente por aplicar a lei.
    Creio que represálias ainda não aconteceu com Sergio Moro por ele ser senador.

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    A mídia estatizada finge. Faz parte do acordo para abocanhar nosso dinheiro.

  4. COLETTO ASSESSORIA EM SEGURANÇA DO TRABALHO LTDA
    COLETTO ASSESSORIA EM SEGURANÇA DO TRABALHO LTDA

    SEM DUVIDAS A SITUAÇÃO ATUAL É CULPA DA VELHA MIDIA – ÁRABENS A ESTE JORNALISTA REAL

  5. Thais de MORAES Machado Suppo Bojlesen
    Thais de MORAES Machado Suppo Bojlesen

    Parabéns Mestre Alexandre Garcia, sempre um prazer ler os seus artigos impecáveis!

  6. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Sempre um mestre das informações corretas e postura irretocavel Alexandre Garcia. Seus artigos são fonte segura e norte certo para os brasileiros.

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