Em um mundo cada vez mais digital, onde telas ocupam boa parte da rotina das crianças, um momento continua sendo muito especial: quando um livro é aberto, uma história é compartilhada e a imaginação é convidada a entrar em cena. A literatura infantil vive uma fase de renovação e expansão, impulsionada por transformações no comportamento das famílias, avanços tecnológicos e um novo olhar sobre a importância da leitura desde os primeiros anos de vida.
No Brasil, esse movimento ocorre na contramão da estagnação do setor editorial. Segundo a BookData, serviço da empresa Nielsen especializado em dados e análises do mercado de livros, enquanto o setor como um todo encolheu 6% em 2023, o segmento infantil cresceu 7% e já representa 14% do comércio de livros no país. O entusiasmo dos pequenos é notável: mais de 80% das crianças entre 5 e 10 anos disseram gostar de ler, de acordo com a pesquisa Retratos da Leitura, de 2024, do Instituto Pró-Livro. O número mantém-se entre os leitores de 11 a 13 anos, mas contrasta com a queda de 6,7 milhões entre os leitores adultos.
Editoras apostam alto nesse público. A Companhia das Letras viu seus quatro selos infantis — Companhia das Letrinhas, Pequena Zahar, Brinque-Book e Escarlate — responderem por mais de 21% de seu faturamento. Outras, como a João & Maria, criada em 2022, dedicam-se exclusivamente aos públicos infantojuvenil, com curadoria de títulos estrangeiros pouco conhecidos no Brasil e obras de novos autores nacionais. O Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico (Cedet), que reúne nove selos editoriais, criou recentemente a Texugo para atender crianças e adolescentes.
Cenário político e decadência das escolas
Gabriella Moraes, editora da Texugo, vê no atual cenário político-social uma das razões para o crescimento. “A polarização despertou os pais no que diz respeito à educação dos filhos”, acredita. “Com situações cada vez mais estarrecedoras ocorrendo nas salas de aula, as famílias entenderam que, se não assumissem a responsabilidade, que sempre foi delas, da educação dos filhos, eles seriam doutrinados nas instituições de ensino.” Segundo ela, a editora nasceu para oferecer obras com bons princípios, autores renomados e ilustrações de qualidade: “O que guia nossas escolhas é a união de bom conteúdo e beleza, bons princípios transmitidos de forma divertida e encantadora”.
Já Lorena Miranda Cutlack, escritora e fundadora da João & Maria Editora, diz que há no Brasil uma reação ao cenário educacional decadente. “Se tiver de buscar uma causa para esse movimento, volto minha atenção à má-educação que as instituições de ensino oficiais do nosso país vêm oferecendo às crianças e aos jovens nas últimas décadas”, argumenta. “É um movimento de resistência, de reação a circunstâncias hostis ao desenvolvimento saudável das crianças.”

A força das boas histórias
Lorena conta que, quando atuava como professora de língua portuguesa nas escolas, percebeu que havia poucas opções de bons livros para crianças escritos em português. “Se visitarmos a seção infantil de qualquer livraria, encontraremos uma enxurrada de livros traduzidos e, para completar, mal traduzidos”, relata. A João & Maria nasceu com o objetivo de oferecer “literatura de verdade”. “Consideramos que estamos ajudando a formar o público, conscientizando-o acerca da importância de apresentar bons livros às crianças — livros com textos de valor literário e ilustrações artísticas. Fazemos isso num momento em que o grande best-seller mundial é um livro de colorir, e em que os ‘livros de IA’ já tomam as prateleiras físicas e virtuais.”
O professor e escritor Fábio Gonçalves diz que os livros para crianças cumprem uma função decisiva. “Já publiquei livros para adultos e para crianças, e os infantis vendem muito mais, de longe”, afirma. “Nesse sentido, entendo que o papel do escritor infantil seja o de preparar o leitor adulto, e isso a não só pela criação de histórias interessantes, que revelem desde cedo o valor da literatura, mas, principalmente, pelo bom manejo da linguagem, de modo que o pequeno já vá assimilando, de ouvido, as boas formas de nossa língua.”
Gonçalves explica que o desenvolvimento da leitura das crianças depende de adultos atentos e engajados. “Até uma determinada idade, literatura infantil só funciona com a mediação do adulto — pais ou professores”, diz. “O adulto precisa não apenas realizar a leitura — com toda a precisão de pronúncia, de prosódia, de ritmo —, mas também, e isso é o mais legal, ir respondendo às milhares de questões que os pequenos levantam a cada página.” É nesse momento, segundo ele, que a literatura se transforma em ponte para o conhecimento. “Educar é conduzir para fora, é tirar a criança daquela realidade imediata, do seu meio sensorial, e expandir-lhe os horizontes, e enriquecer-lhe o imaginário — com coisas reais e com coisas possíveis.”
Crítico ao mercado editorial, Fábio observa uma preferência por livros engajados ideologicamente, mesmo no universo infantil. “O mercado me parece um tanto hostil com autores que não escrevem, mesmo para crianças, literatura engajada — que fale de racismo, feminismo, ecologismo, identitarismo etc.”, reclama. “É ainda efeito da cultura woke que, me parece, está entrando em fadiga.” Para ele, fora dos grandes selos, os desafios se multiplicam: “Pequenas tiragens, baixa circulação, pouquíssimos leitores, espaço minúsculo nos grandes veículos de mídia”.
Brasil, EUA e Ásia apontam direções diferentes
O sutil crescimento da literatura para crianças no Brasil reflete uma tendência mundial. Avaliado em mais de US$ 10 bilhões em 2024, o mercado global de publicações infantis deve superar US$ 13 bilhões até 2033, com uma taxa de crescimento anual de 3%, de acordo com relatório da Business Research Insights. Mais do que entreter, os livros infantis se consolidaram como ferramentas essenciais para o desenvolvimento da linguagem, da empatia, da criatividade e da alfabetização.
Em 2024, o mercado americano de livros infantis movimentou US$ 3,5 bilhões, cerca de 32% da receita total da indústria editorial. Lá, grandes editoras como Scholastic, Penguin Random House e HarperCollins dominam o setor, que é menos afetado pela digitalização. E-books têm menor adesão entre as crianças, e edições de bolso seguem como as preferidas, tanto pelo preço quanto pela ibilidade. Séries juvenis de sucesso e suas adaptações para cinema e TV geram picos de vendas e mantêm o interesse do público. Apesar das cifras bilionárias, o mercado editorial americano, inclusive o voltado para as crianças, está estagnado.
Já na Ásia-Pacífico, a literatura infantil acompanha um ritmo acelerado. Com mais de 40% das crianças do mundo, países como China, Japão, Coreia do Sul, Índia e Cingapura formam um mercado em plena expansão, impulsionado por investimentos em educação e tecnologia. A região tornou-se essencial para o crescimento global do setor.
Telas, tecnologia e o desafio de formar leitores
A transformação digital é parte essencial desse novo cenário. Enquanto a leitura de e-books não chama a atenção de crianças, sobretudo as pequenas, o uso cada vez mais frequente de telas — celulares, tablets e televisão — pelos pequenos também os afasta dos tradicionais livros de papel. Fora do país, editoras tentam driblar a situação investindo em livros digitais com animações, efeitos sonoros e jogos.
Lorena diz que o uso cada vez maior de telas por crianças dificulta a concentração e o gosto pela leitura, além de causar outros prejuízos. “A atual geração de crianças não tem tempo de atenção, não consegue se concentrar em um objeto que não fique emitindo som e piscando”, explica. “A hiperestimulação sensorial dos nossos filhos lhes trará prejuízos muito difíceis de reverter no futuro.”
Ela ressalta que o problema não é apenas o uso excessivo de dispositivos, mas a falta de conexão afetiva. “Quando uma mãe me pergunta o que pode fazer para ‘resgatar’ o filho que só quer saber do videogame, eu, do fundo do coração, digo-lhe que invista na construção de uma rotina de leitura em família — nem que sejam dez minutos diários, inicialmente.”

Gabriella Moraes compartilha a mesma preocupação. “O impacto é evidente. As crianças que consumiram conteúdo em sua maioria via telas são os adolescentes dos dias de hoje, que têm pouco ou nenhum interesse em literatura”, conta. “Quando eles procuram por alguma leitura, ela geralmente está ligada aos jogos e aos influencers que acompanham nas redes sociais.” Para ela, enquanto os livros para bebês e crianças pequenas ainda dependem da escolha dos pais, o desafio está em atrair o público juvenil. “É preciso disputar a atenção com redes sociais e jogos. Os pais precisam correr atrás do prejuízo antes que seja tarde demais.”
O coração e a inteligência
A empresária Giselle Pepe viu, na literatura infantil, uma forma de cuidado com a filha de 6 anos. “A leitura entrou na nossa rotina de um jeito muito natural, quase como uma forma de cuidar da Letícia”, conta. Desde pequena, a menina foi cercada por livros que não serviam apenas como atempo, mas como portas para o imaginário e o aprendizado. “Ela começou a conectar o que lia com o que vivia, a entender melhor os sentimentos e a desenvolver um raciocínio mais refinado, mas sempre com muita sensibilidade”, relata. Giselle entende que a boa literatura ajuda a formar o “coração e a inteligência” das crianças. Para ela, os critérios na escolha de um livro infantil devem incluir “um vocabulário rico, ilustrações bonitas e, principalmente, mensagens que transmitam bons valores”.
A empresária também leva em consideração as escolhas e os gostos da filha, para que ela não perca o interesse pelas histórias. Letícia conta que o que mais gosta nos livros é conhecer os personagens e todas as informações que eles trazem. As histórias que mais a encantam são as que têm “finais felizes”. Entre os favoritos, cita o clássico O Patinho Feio, histórias de Nossa Senhora de Fátima e os atemporais contos de fadas. Para ela, os livros são fontes de curiosidade, personagens marcantes e descobertas — elementos que mantêm a leitura presente em sua rotina com alegria e encantamento.
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Quer melhorar tudo nesse país inclusive o mercado editoral, tire da mão do estado
Uma sugestão: a revista poderia publicar matérias culturais no campo da literatura, artes, música, etc, trazendo artistas que não aparecem nas publicações da grande mídia, como os autores do CEDET, grupo editorial que publicou meu romance.