Há séculos o Brasil é o maior produtor de cana-de-açúcar. A safra flutua ao redor de 700 milhões de toneladas, das quais 91% produzidas no Centro-Sul e 9% no Norte-Nordeste. Com a criação do Proálcool (1975), parte da cana destinou-se à produção de etanol combustível. Começava a era da agroenergia (Revista Oeste, Edição 248). E teve início a cogeração de energia elétrica, com o bagaço em caldeiras. Com investimento e inovação, o setor sucroenergético ou a produzir biogás e biometano. E não parou aí.
Agora o setor sucroenergético dá os para gerar uma variedade de novos produtos, pouco conhecidos. De maior valor agregado, eles estão associados a diversas indústrias: SAF, combustível sustentável de aviação (Revista Oeste, Edição 234); biobunker ou e-metanol, combustível sustentável para navios (Revista Oeste, Edição 205); biometanol ou metanol renovável, produzido por meio de gaseificação; amônia verde, produzida com biometano e nitrogênio do ar; hidrogênio verde (H2V); bioplásticos ou plásticos verdes; lignina, biopolímero presente na casca da cana-de-açúcar etc. Todos com demanda crescente, aqui e no exterior.

O setor sucroenergético é um dos maiores e mais antigos do agronegócio. São 10 milhões de hectares cultivados, mais da metade no Estado de São Paulo. Essa área é quase duas vezes a da Índia (segundo produtor) e três vezes a da China (terceiro produtor). São cerca de 380 unidades de produção. Presente em 1,2 mil municípios, o setor gera 730 mil empregos formais e 2,2 milhões indiretos. Além das fazendas das usinas, existem dezenas de milhares de pequenos e médios fornecedores de cana. Nesse universo heterogêneo, grandes avanços em produtividade ainda poderão ser obtidos no campo.


No ciclo de 2023/2024, o setor exportou US$ 19,8 bilhões em açúcar e etanol. É a quarta maior exportação do agro, após soja, carnes e produtos florestais. O açúcar obteve US$ 18,2 bilhões, um recorde histórico. E o etanol, com 2,6 bilhões de litros exportados, cerca de US$ 1,53 bilhão. O valor bruto da cadeia sucroenergética é superior a US$ 100 bilhões e seu PIB é da ordem de US$ 40 bilhões ou 2% do PIB brasileiro. Vale atualizar:
Açúcar. O Brasil é o maior produtor e exportador de açúcar. Produziu, em 2024, cerca de 46 milhões de toneladas e exportou 35,3 milhões de toneladas, um novo recorde histórico. O país representa 25% da produção global e 50% da exportação mundial de açúcar, um alimento por excelência. O mundo precisa e busca essa doçura. A produção brasileira de açúcar representa 184 trilhões de calorias (1 quilo de açúcar = 4 mil calorias). Em termos energéticos, ela poderia atender a demanda calórica anual de 185 milhões a 200 milhões de pessoas (2,5 mil a 3 mil calorias/pessoa/dia).

Etanol de primeira geração (E1G). O Brasil é o segundo maior produtor de etanol. O ranking é liderado pelos EUA. Na safra 2023/2024, produziu 35,9 bilhões de litros, dos quais 6,3 bilhões de etanol de milho. Do território nacional, 0,9% é destinado à produção de etanol E1G. Em veículos flex, ao substituir a gasolina, o EG1 reduz as emissões de CO₂ em até 90%. Não há outro país com frota de 32 milhões de veículos apta a utilizar qualquer combinação de gasolina e etanol. A mistura de 27% de etanol anidro na gasolina reduziu as emissões em mais de 660 milhões de toneladas de CO₂ de março de 2003 (lançamento dos veículos flex) a dezembro de 2023. Esse número é superior à emissão total de CO₂ pela Alemanha em 2024.

Em 2024, segundo a Agência Nacional do Petróleo, o consumo de gasolina caiu 4% em relação a 2023. O de etanol cresceu 33,4% e atingiu 21,7 bilhões de litros. Só a mistura na gasolina não explica a queda no consumo. A participação do etanol no mercado de ciclo Otto (motores a combustão) atingiu 45,7% da energia consumida por veículos leves em maio de 2024. Um aumento de 6,9% em relação a 2023. O consumidor brasileiro recorre cada vez mais ao álcool combustível.
Bioeletricidade. Cerca de 8% da eletricidade do Brasil vem de biomassa, onde se destaca o bagaço de cana. Ela é a quarta fonte da matriz elétrica nacional e representa 34% da energia renovável ofertada internamente. A geração anual de eletricidade pela cana alcançou 21 TWh (2023). Apesar de equivaler a quase 25% da geração da Usina Itaipu ou à demanda de 11 milhões de residências, é apenas 15% de seu potencial de energia elétrica. A geração poderia ser de 151 TWh (sete vezes mais) ou 30% do consumo no Sistema Interligado Nacional. A bioeletricidade evitou a emissão de 4,3 milhões de toneladas de CO₂ em 2023. Para a mesma economia de CO₂ seria preciso plantar 5 bilhões de árvores nativas e deixá-las crescer por 20 anos.
São muitas as vantagens da bioeletricidade da cana: é gerada próxima aos centros consumidores de energia elétrica; reduz perdas do sistema em longas transmissões; diminui a necessidade de investimentos em transmissão; é uma geração não intermitente e complementar à hídrica, no momento mais reduzido das vazões dos rios, de abril a novembro (período seco); reduz o acionamento das termoelétricas, com base em combustíveis fósseis. Além de alimentar usinas e instalações, a energia excedente vai à rede elétrica e pode ser comercializada no mercado livre de energia. Com a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), se o governo não atrapalhar com sua sanha arrecadatória e regulatória antimercado, a bioeletricidade tem potencial para crescer mais de 55% até 2030.

Etanol de segunda geração (E2G). Esse biocombustível avançado utiliza enzimas selecionadas para extrair açúcares presentes na celulose e hemicelulose do bagaço e da palha. Ao contrário do etanol E1G, produzido do caldo da cana, o E2G aproveita os resíduos da produção de açúcar e torna o processo mais sustentável. Esse reaproveitamento aumenta em até 50% a produção, sem crescimento de área plantada. O E2G gera 30% menos emissões de CO₂, comparado ao E1G. A Raízen é a única empresa a produzir E2G em escala comercial.
Biogás e biometano. O biogás resulta da fermentação por bactérias dos resíduos da produção: vinhaça e torta de filtro. O biogás é uma mistura de gases, sobretudo metano e dióxido de carbono. O biometano é o biogás purificado, com a remoção do dióxido de carbono e de impurezas. Tem composição em metano mais elevada e com maior qualidade, análogo ao gás natural. Substitui o diesel em veículos pesados (caminhões, ônibus e tratores) e emite 90% menos CO₂. Empresas investem na construção de caminhões a biometano. A Associação Brasileira do Biogás (ABiogás), com 165 empresas associadas, defende o biometano em frotas de caminhões pesados para descarbonizar o transporte. A previsão da ABiogás, até 2032, é de 194 plantas industriais, produzindo 7,9 milhões de Nm³/d. Para 2025, prevê-se produzir 3 milhões de Nm³/d.
SAF. A aviação internacional contribui com 3% das emissões totais de CO₂ no planeta, segundo a Agência Internacional de Energias Renováveis (Irena). Uma contribuição superior à do Brasil como país. O setor aéreo é o meio de transporte com maior crescimento do mundo. Esse valor deve dobrar até 2050. A International Air Transport Association (IATA) definiu o objetivo de zerar as emissões de carbono do setor aéreo até 2050, o Fly Net Zero. Boa parte da descarbonização será pelo SAF, única alternativa viável para voos longos, os mais poluentes: 6,2% deles geram 52% das emissões.
Em seu ciclo de vida, o SAF reduz em até 80% as emissões de CO₂ do setor aéreo e é compatível com os motores atuais. Aqui, as companhias já assumiram compromissos em usar SAF e se tornarem Fly Net Zero: Latam em 2050, Azul em 2045 e Embraer em 2040. O etanol de cana é uma das matérias para a produção de SAF. A extração de hidrogênio renovável, obtida a partir do etanol, facilita muito a produção em escala comercial do SAF. A Raízen foi a primeira produtora de etanol a receber certificação Carbon Offsetting and Reduction Scheme for International Aviation (ISCC CORSIA Plus), ao cumprir os requisitos internacionais para produzir SAF, inclusive em parceria com Hong Kong.

Saideira. Não se pode esquecer a cachaça, dentre os produtos tradicionais, sempre novos e evoluindo da cana-de-açúcar. É a denominação legal de uma aguardente produzida apenas no Brasil. A matéria-prima exclusiva da cachaça é o mosto fermentado do caldo da cana e outros subprodutos do açúcar. Em 2023, o Brasil exportou cerca de 10 milhões de litros, mais de US$ 20 milhões, para quase cem países, por meio de uma centena de empresas e cooperativas exportadoras (Revista Oeste, Edição 219).
O setor da cana-de-açúcar, principal pilar da energia renovável, da descarbonização e da transição energética, seguirá líder na produção de alimentos, bioeletricidade, biocombustíveis e materiais recicláveis. É uma das cadeias produtivas do agro mais amplas, diversificadas e industrializadas. O Brasil construiu uma usina solar sustentável de 10 milhões de hectares. E tem quatro séculos de experiência em seu manejo. Ainda dá para confiar no futuro. Malgré tout et malgré eux (“apesar de tudo e deles”).

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Aqui em casa sai de um carro a gasolina e comprei u flex zero bala .. só no álcool.. é nós mano..vai Brasil!
Excelente explicaçao sobre todas as possibilidades de se aproveitar a cana de açucar
Nasci e cresci em Piracicaba (interior de SP) em meio a canaviais e “garapa” – suco de cana
Orgulho desse nosso pais e torcendo pra voltar para os eixos
Os artigos do prof. Evaristo são uma aula de agro, mundo rural e Brasil. Nunca imaginei 10% de todos esses produtos e serviços oferecidos pela cana de açúcar. Não é a cana um símbolo de atraso e sim de inovação e pioneirismo em tecnologia e sustentabilidade. Quem saber disso? Só mesmo assinando a Oeste.