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Edição 272

Reforma do Código Civil: o novo que atrasa o Brasil

A pretensão de poder dos ministros do STF revela sua busca por uma juristocracia. Como a Constituição foi feita sob a lógica democrática e a divisão de Poderes, muda-se a lei e atropela-se o Legislativo

O Brasil da insegurança jurídica que assola a vida brasileira desde que a atual formação do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu rever direitos e garantias constitucionais produziu mais números e um novo nome. O nome é Reforma do Código Civil Brasileiro, um Projeto de Lei apresentado pelo senador Rodrigo Pacheco e protocolado em seu último dia como presidente do Senado, 31 de janeiro deste ano. Os números são alguns, mas dois deles são assustadores. De baciada, a reforma propõe revogar ou modificar severamente 897 artigos do código em vigor e incluir 300 novos. Todos com a pretensão de modernizar o que não está desatualizado e atender a sociedade no que ela não estava demandando.

“É uma reforma que ninguém pediu. A sociedade não pediu uma reforma no Código Civil”, advertiu o advogado Leonardo Corrêa, sócio da 3C LAW Corrêa & Conforti Advogados e presidente da Lexum, uma associação de juristas dedicada à defesa da liberdade e do Estado Democrático de Direito no Brasil. Ao apontar a completa ausência de necessidade da reforma, durante entrevista ao programa Oeste Negócios, na edição do dia 2 de junho, Corrêa fez questão de recuperar um conceito básico em regimes democráticos: demandas por mudanças ou transformações vêm da sociedade, de um apelo popular, depois de longo e público debate. Diferentemente das recentes reformas trabalhista, da Previdência e tributária, altamente demandadas e porque as leis anteriores já tinham exaurido sua capacidade de regular o país, o caso atual de alterar o Código Civil é definitivo em expor, uma vez mais, esse incômodo e excrescente ativismo, sempre com desejo disruptivo, do Poder Judiciário brasileiro, como se o Brasil precisasse ser reescrito a todo momento ou “recivilizado”.

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Menciono aqui o Poder Judiciário por duas razões. Primeiro, porque a pretensão de poder a qualquer custo da ala mais dura e radical dos ministros do STF, como um Olimpo moderador e punitivo na base do “cumpra-se”, não esconde de ninguém que sonha com uma juristocracia, um governo de juízes. As vozes contrárias dos ministros Luiz Fux e André Mendonça, que têm denunciado essa empáfia suprema, são importantes, mas isoladas. Como a Constituição Brasileira e os códigos legais do país foram feitos sob a lógica democrática e a divisão de Poderes “independentes e harmônicos entre si”, muda-se a lei, para dar verniz de legalidade, e atropela-se o Legislativo, sob o argumento conveniente de ausência de decisões. A segunda razão é que a presente tentativa de reforma vai exatamente neste sentido, o de aumentar exponencialmente o poder discricionário dos juízes de todas as instâncias. Como praticamente tudo hoje vai parar nas mãos de algum ministro do Supremo ou de Turmas viciadas com votos e decisões por maioria claramente previsíveis, o julgamento é um detalhe.

Mas há ainda outro ponto que chama atenção nessa hiperbolização do Judiciário. A proposta de reforma do Código Civil foi solicitada pelo senador Rodrigo Pacheco ainda em 2022, já nesta temerária era de ativismo judiciário. Depois de apenas oito meses de discussão, o grupo de “notáveis” comandado pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, entregou, em abril de 2023, o anteprojeto de reforma do Código Civil Brasileiro. O texto ficou trancado na gaveta de Pacheco até 31 de janeiro de 2025, quando foi apresentado como um projeto de lei, no último dia de mandato do então presidente do Senado. Um fato que não se pode menosprezar: Pacheco foi provavelmente o presidente do Senado, que tem poder para pautar processos de impeachment contra ministros do Supremo, mais próximo da Corte de que se tem notícia na história do Brasil. O apequenamento do Congresso que permitiu ao STF avançar sobre prerrogativas alheias tem as marcas da gestão do senador mineiro, que só se elegeu porque a opção dos eleitores de Minas Gerais, à época, era Dilma Rousseff. Rodrigo Pacheco também é o eterno candidato a uma vaga na Corte. Hoje depende do tempo, do imponderável e de Lula. O tempo está ando, o imponderável é imponderável, e Lula não é confiável.

Senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), no Plenário do Senado Federal, durante sessão deliberativa ordinária (28/5/2025) | Foto: Andressa Anholete/Agência Senado

Dado o contexto político que muito explica sobre o novo código, o que será que de tão novo ou paradoxal aconteceu no mundo e no Brasil para que seja preciso praticamente anular o código civil atual, em vigor desde 2003, pouco mais de duas décadas atrás? Veja que o código anterior era o de 1916. Até chegarmos ao código vigente, foram 40 anos de debate e amadurecimento, iniciados nos anos 1960, até que, no segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, o Congresso, não sem uma ampla discussão anterior, aprovasse em 2022 o novo código, que entraria em vigor no ano seguinte. Tudo no tempo da política e da sociedade. A sanha revisionista atual não encontra motivo que a justifique. Não algo que atenda minimamente aos critérios da sensatez, do interesse público e da segurança jurídica.

É aí que a internet vira uma muleta para qualquer argumento de ruptura com as leis e as garantias pacificadas que temos. Uma das alegações para a reforma do Código Civil, que regula a vida de tudo com quem ou com o que nos relacionamos, desde o nascimento até a morte, é que as transformações digitais obrigariam a atualização da legislação atual. É uma falácia, uma narrativa perigosa cujos precedentes brasileiros recentes sugerem cautela. Sob o mesmo argumento, o Supremo tem afrontado cláusulas pétreas de nossos direitos civis e liberdades constitucionais a título de “salvar a democracia”, relativizando liberdades que deveriam ser intocáveis, reescrevendo leis, processando pessoas e empresas e prendendo quem não concorda com a maioria da formação atual da Corte. Ainda mais grave: a sequência de gerúndios que sustenta a insegurança e impõe receio e medo ao país é precedida pelo pior deles: o STF está legislando. Embora a reforma radical do Código Civil tenha de ar pelo Congresso, é uma proposta de notáveis liderada por um juiz do STJ, apresentada por um amigo de juízes, que empodera juízes e que será votada por parlamentares acossados pelo Judiciário. Alguma outra denominação de afronta e temeridade institucional e à democracia que defina melhor a situação?

Ministro Luis Felipe Salomão (2013) | Foto: Wikimedia Commons/STJ

E os exemplos do precipitado texto reformista falam por si. No capítulo dos “Contratos”, a legislação em vigor tem regras claras com apenas duas exceções: contratos precisam ser regidos por boa-fé e função social. Mais do que suficiente, prático e seguro. Na nova versão, são 33 exceções divididas em “ordem pública, boa-fé, confiança, probidade e função social”. Se a “função social” já é difícil de definir no ponto em que aparece na Constituição de 1988 — vide o direito inequívoco à propriedade privada que garante e a confusa “função social” que impõe ao uso da terra —, imagine em todo o resto? A validação de qualquer contrato obrigaria a consulta a um juiz. Mas, como o Judiciário não é poder consultivo, então tome insegurança jurídica e mais processos entulhando fóruns Brasil afora. E mais: ao ampliar as condições em que a fiança de garantia para um empréstimo possa ser requerida pelo credor, a recuperação do crédito ficaria muito mais dependente do entendimento do juiz. Em economia, risco maior significa juros mais altos e menor oferta de crédito para pessoas de baixa renda e para empresas endividadas, justamente as que mais precisam.

No Direito Empresarial, a reforma cria empecilhos para o investimento estrangeiro no país. Uma das exigências é que o investidor em empresas locais e na bolsa precisará ter sede física no Brasil e não ter recebido subvenção de governo no exterior. Um exemplo: todas as montadoras de veículos do mundo que hoje têm filiais no país, receberam ou ainda recebem subsídios de seus governos nos países de origem. E qual é o sentido de carimbar o dinheiro que alimenta o mercado de capitais com um CEP? Isso só aumentaria a dificuldade para investidores colocarem seus ativos no país, além de ser um “incentivo” a procurarem outros mercados livres de um Estado exagerado e interventor, por isso, tóxico.

Estacionamento da General Motors, em São Bernardo do Campo, SP (2015) | Foto: Shutterstock

Ainda na seção que altera os contratos entre empresas, se o código atual simplifica as relações garantindo maior liberdade entre as partes e prevalência do pactuado sobre a burocracia estatal, a atual reforma é prolixa e insiste em princípios genéricos como “ordem pública” e, mais uma vez, “função social”. Tudo o que reduz a previsibilidade, a segurança contratual e leva as partes para um tribunal, em que a intervenção judicial a a ser dominante. E serão milhares de decisões ditadas por juízes espalhados pelo país com interpretações pessoais de princípios muito abertos, o avesso da normalidade de leis bem escritas que obrigam o juiz a apenas aplicar regras claras, concretas e previsíveis. Diante da profusão de distorções e entendimentos diferentes, o destino final de tudo será Brasília. E, nas Cortes da capital federal, com escritórios de parentes de ministros podendo atuar sem impedimentos, que Justiça teremos?

Ao mexer em leis já pactuadas com a vida brasileira, pacificadas em sua aplicação pelos tribunais, como a responsabilidade civil, a proposta de reforma pode incentivar a indústria do dano moral, remetendo demasiado poder discricionário ao juiz. Quanto vale uma quebra de contrato ou um direito de reparação por ofensa no Amazonas, em São Paulo, no Rio Grande do Sul ou em Mato Grosso? Ficaremos à mercê de valores morais, da compreensão dos juízes e da cultura local, com maior ou menor vigilância popular? Talvez até das ideologias? O código ainda altera de forma extrema os direitos reais como a posse, garantias fiduciárias e a livre iniciativa. A semelhança que aproxima todas as alterações é a inevitável judicialização de tudo, quase que como caminho único e forçado, sob conceitos de julgamento baseados em princípios, não em regras estáveis e bem definidas pelo legislador. O Poder Moderador do Judiciário, um desejo incontido e já verbalizado por alguns dos ministros do Supremo Tribunal Federal, estará garantido em lei se a reforma for adiante. Mas a Constituição não prevê um Poder Moderador. Seria inconstitucional. Mas quem julga o que é constitucional ou não? O STF. Mais Brasília, menos Brasil.

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Em tempos de um governo que descaradamente pede ajuda à ditadura chinesa para “regular” redes como o TikTok, um eufemismo para a censura e um ataque à nossa soberania, e cujo parceiro de consórcio, o STF, quer rever o Marco Civil da Internet porque alguns artigos não lhe agradam, a proposta de reforma atual tem também o potencial de impor restrições à liberdade dos usuários das redes sociais e até de ameaçar o jornalismo investigativo. Mesmo se verdadeira, caso a informação tenha sido obtida por meio “ilícito”, como numa conversa gravada entre pessoas sem o consentimento de uma delas, tal como acontece em denúncias que flagram um corrupto, o recebimento de propina etc., a notícia pode ser censurada. Quem ganha com isso? Não a sociedade.

A falta de debate, o atropelo, a forma, quem redigiu, a mando de quem e como foi apresentado o texto final desse projeto de lei de reforma do Código Civil Brasileiro é algo que vai contra a história deste país, desde a redemocratização nos anos 1980. Tornamo-nos um povo que não abre mão do debate público verdadeiro e da transparência. A pretensa reforma é uma ameaça ao nosso modo de viver. Por isso, a definição do advogado Paulo Doron, professor de Direito Privado na Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, e em várias instituições na Europa, sobre o que é o Código Civil de um país é definitiva para dar um basta à pretensão de mudar um código que tem apenas 22 anos de vida: “O Código Civil é a lei mais importante para o cidadão. Uma pessoa pode ar a vida inteira sem se relacionar com o Código Penal, basta não cometer crime. Mas nenhum brasileiro consegue ar sua vida sem se relacionar com o Código Civil. Porque nascer e morrer são atos jurídicos civis”.

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Como entre nascer e morrer todo mundo faz o possível para que seja um período longo, imagine viver com insegurança jurídica, falta de previsibilidade, leis maleáveis sob a interpretação de um juiz decidindo sua vida a todo momento? O Brasil e os brasileiros nunca se eximiram de reformar ou aperfeiçoar suas leis. Desde que faça sentido. Não é o caso de uma reforma tão ampla como a pretendida. Dado o açodamento e a ausência de ampla consulta pública, o arquivamento é a única saída segura.

Por fim, chega de usar o mundo digital e uma pretensa vulnerabilidade das pessoas para justificar um Estado se intrometendo em tudo e decidindo por você. É preciso dizer a toda essa gente que a internet, as redes sociais e as plataformas são apenas meios, uma transformação de como fazíamos as coisas antes e como as fazemos hoje. Nas pontas de contratos e da comunicação do século 21, existem empresas e pessoas autônomas, tal como antes, que só precisam de leis estáveis e justas. E que repudiam a tutela.

Leia também “O Brasil contra Lula e o STF”

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