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Edição 272

Regular e coçar é só começar

'Ver jornalistas defendendo que o Estado tenha o poder imediato de decidir o que eles podem ou não podem falar, sem processo nem nada, é emocionante'

— Tem que regular as redes!

— Regular é pouco.

— Pouco?

— Claro. Podendo ter o bom, ou até o ótimo, por que pensar só no regular?

— Não é nada disso.

— Não? Você prefere ruim ou péssimo? Olha que a rejeição já tá alta demais.

— Não falei regular nesse sentido.

— Não? Ah, entendi. Você está falando em regularidade. Aí, sim. Quanto mais regular, melhor. Chega de instabilidade e intempestividade…

— Cala a boca.

— O que é isso, companheiro? Acho que você não está regulando bem.

— Nem comecei a regulação ainda. Depois que estiver tudo regulado não vai haver mais diálogos idiotas, nem vou ter que ouvir coisas que eu não quero.

— Vai ficar regulando os outros?

— Você não entende mesmo o que é regular, né? Já é o quarto significado errado que você dá.

— Qual é o certo?

— Regular é acabar com a desinformação e o ódio.

— Ah, tá. E como se faz isso?

— Dando poderes ao Estado para banir sumariamente das redes tudo que possa ser enganoso e perigoso para a sociedade.

— Isso é que é regular?

— É. Gostou?

— Muito interessante. E quem vai decidir o que é enganoso e perigoso?

— Ah, tá na cara, né? Nunca viu um discurso de ódio? Não sabe reconhecer uma fake news?

— Mas não tem gente que fala de amor e pratica o ódio?

— Cala a boca.

— Desculpe, não quis ofender.

— Eu que peço desculpas, não queria ter sido tão rude. É que já estou no clima da regulação, entende?

— Claro! Você deve estar empolgado com a limpeza do ambiente e já me deu uma vassourada previamente.

— Foi exatamente isso. Que bom que você compreende. Não vejo a hora de não ter mais que responder a perguntas como a que você me fez.

— Foi uma pergunta equivocada. É que ainda não estou familiarizado com o conceito da regulação. Aí fico desinformando e disseminando ódio sem sentir.

— Não se preocupe. Já, já isso a. O chinês de confiança vai nos ajudar a botar tudo no lugar.

— Será que a gente vai conseguir um ambiente tão limpo e organizado quanto o da China?

— Estou otimista. Tem muita gente boa entendendo o que é democracia e defendendo a regulação, inclusive na imprensa.

— Isso emociona.

— Não é? Ver jornalistas defendendo que o Estado tenha o poder imediato de decidir o que eles podem ou não podem falar, sem processo nem nada, é emocionante.

— Consciência é tudo.

— Consciência e ética.

— Mas e se a regulação cortar a língua deles também?

— Deles quem?

— Desses jornalistas que estão defendendo a regulação.

— Companheiro, cada um é responsável pelo que faz com a sua língua. Jornalistas atentos que nunca saírem da linha não vão ter problemas.

— E se a linha mudar de direção?

— Cala a boca.

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1 comentário
  1. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Eu não entendo como um tirano pode entender de democracia mais do que Dom Corleone

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